Capítulo 1

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Giovanna Martins

Estou sentada à mesa da cozinha, enquanto observo a chuva escorrer pela janela, criando pequenas trilhas de água que distorcem a paisagem da noite lá fora. Tornou-se um hábito: pensar na minha vida, no que foi e no que sobrou depois de tudo. A xícara quente aquece minhas mãos, mas não o vazio que carrego dentro de mim. Me vejo alternando entre o presente e o passado — conferindo se Christian, meu pequeno furacão de alegria e travessuras continua na sala assistindo seus desenhos favoritos. Ao olhar para ele, acabo me lembrando do dia em que ele nasceu. 

Foi o momento mais belo da minha vida... e também o mais cruel. A lembrança do abandono de Santiago ainda queima como uma ferida aberta dentro de mim. Entreguei a ele tudo o que eu tinha: corpo, alma, sonhos. E ele foi embora, deixando não apenas a mim, mas também um coração despedaçado e um bebê que nos uniu para sempre, mesmo que estejamos longe um do outro. 

Quatro anos. Quatro longos anos tentando reconstruir algo que ainda parece feito de areia. Se não fosse meu pai, que assumiu com amor o papel de avô e figura paterna, eu não sei como teria conseguido. Ele é meu pilar. Ainda assim, admitir a dificuldade não diminui a dor; apenas a torna mais real.

Meus pensamentos são interrompidos pelo som da campainha.  Levanto-me lentamente, deixando a xícara pela metade, e atravesso a cozinha. Mas antes que alcance o corredor, Christian, curioso e cheio de energia, desce correndo do sofá. Com a ansiedade típica de uma criança, ele alcança a porta primeiro.

Ouço a voz animada de Christian ecoar pelo corredor:

— Papai chegou! Papai chegou!

Por um momento, fico confusa. Não faz sentido. Meu pai está em Londres com Vanessa, sua nova namorada. Ele tirou férias do hospital onde trabalha como cirurgião pediátrico para explorar o mundo — algo que sempre dizia que faria quando tivesse tempo. Será que ele voltou de surpresa? A ideia de vê-lo novamente me faz sorrir, já que meu pai é uma das poucas pessoas que consegue trazer um pouco de leveza à minha vida.

Mas o sorriso se esvai lentamente quando vejo braços fortes erguerem Christian para o alto, girando-o com uma alegria que não reconheço de imediato. O som grave de uma risada chega até mim, e meu coração para por um instante. Não é meu pai.

É Santiago.

O homem que me destruiu e me deixou para trás está aqui, de carne e osso, com aquele mesmo sorriso cativante que outrora me fez esquecer o mundo. Minha mente entra em colapso ao ver o brilho nos olhos de Christian, cheio de amor pelo pai que sempre deixei que ele visse, apesar de todo o meu orgulho ferido. E é nesse momento que percebo como as coisas nunca foram realmente simples.

O instinto de proteger meu filho grita dentro de mim, mas não consigo mover um músculo. É como se meu corpo travasse, enquanto a mágoa lateja novamente, espalhando-se como veneno.

Santiago Castillo.

O nome que sempre tentei enterrar, mas que ainda assombra meus dias e noites. Ele está aqui, me obrigando a encará-lo, trazendo à tona as lembranças da traição, do abandono, e de como o mundo desabou sob os meus pés. E agora, mesmo sem querer, ele também está trazendo à tona algo que odeio admitir: a parte de mim que nunca conseguiu esquecê-lo completamente.

Meu sorriso desaparece tão rápido quanto surgiu, enquanto o olhar dele finalmente cruza com o meu. E, por um instante, o passado e o presente se encontram, como um soco que tira o ar.

— Onde está sua mãe? — a maldita voz grave ecoa.

Christian, animado, gira no colo dele e aponta em minha direção com um sorriso que ilumina o rosto de Santiago. É como se, por um momento, o tempo parasse, e todas as emoções que enterrei a força viessem à tona.

Depois que tudo deu erradoOnde histórias criam vida. Descubra agora