Uma linha de luz era o que escapava pela cortina mal fechada. Não era um problema naquele horário, quando a única iluminação era fornecida pelas poucas lâmpadas externas. Se a lua estivesse cheia, aquele feixe de luz talvez a incomodasse mais. Mas certamente seria um enorme problema quando o sol nascesse. Um problema recorrente, porque o homem que dormia à seu lado nunca fechava as cortinas da forma certa.
Leônidas Lobato ressonava baixo e ocupava um espaço ridiculamente pequeno na cama, se fosse levar em conta o tamanho que ele tinha. Heloísa Camargo jamais saberia se ele costumava se encolher no canto da cama antes do casamento deles, ou se era uma tentativa de que ela ficasse mais confortável. Mas, nos oito meses que aquele casamento já durava, ela nunca o viu dormir em outra posição, ou se espalhar mais do que deveria naquela cama.
Ele dormia de costas para ela, os cachos mais curtos do que quando se conheceram levemente espalhados pelo travesseiro. Leônidas dormia com uma regata, porque sentia calor demais. E era esse também o motivo das cobertas estarem sempre do lado dela da cama. Quando muito ele cobria o corpo com um lençol fino, que geralmente ficava esquecido no decorrer da madrugada.
Seu marido tinha o sono leve e acordava para cuidar de Clara sempre que ela chorava. Tinha uma voz calma que parecia um feitiço para aquela menina de olhos espertos que estava prestes a completar seis meses. Ele a ninava em um instante, e a menos que Clara precisasse mamar, Leônidas sequer acordava Heloísa. Ou achava que não a acordava, porque ela sempre acordava e sempre o ouvia contar histórias para a filha.
Heloísa era capaz de observá-lo por horas, o que seria esperado para qualquer mulher apaixonada e recém casada. Porém ela não era uma mulher apaixonada, e seu casamento havia sido um acordo pouco compreendido por ela. Em um dia estava decidida a criar a filha sem revelar a ninguém quem era o pai dela, e no outro estava noiva do Doutor Leônidas Lobato, o médico da cidade. E era esse o motivo de observa-lo tanto. Não conseguia compreender o que faria um homem estudado, culto e bonito assumir um compromisso com uma quase desconhecida.
Leônidas era gentil, ela precisava admitir. Havia sido gentil até mesmo ao dar a ela a notícia da gravidez, tomando o cuidado de conversar a sós com ela antes de qualquer decisão. Lembrava-se de ficar encantada com o olhar dele no dia que se conheceram. Era um marido bondoso, educado e cuidava de Clara como se fosse sua própria filha. E, para todos os efeitos, ela era.
É claro que o Coronel Afonso havia montado uma clínica para Leônidas no centro da cidade. Certamente seu status havia mudado bastante após o casamento. Mas Leônidas não parecia um homem movido pelo dinheiro. Era um homem que falava apaixonadamente sobre suas convicções, seus pacientes, sobre livros e cultura. Por isso Heloísa se perguntava, todos os dias, há meses, qual era a motivação dele.
O choro de Clara soou alto e Heloísa viu Leônidas levantar-se antes mesmo que ela pudesse pensar em fazer o mesmo. Em segundos ele já tinha o bebê nos braços, e Heloísa suspirou ainda imersa em tantos pensamentos.
- Não precisa chorar, meu amor. – ele disse, com aquele tom que parecia música de ninar. – O papai está aqui.
Clara resmungou, chorando mais alto. Os olhos verdes dele se voltaram para Heloísa com um sorriso que parecia um pedido de desculpas.
- Acho que é hora dela mamar. – Leônidas foi até Heloísa, depositando Clara nos braços dela como se fosse a mais delicada das criaturas. – Sinto muito, minha rosa.
Minha rosa. Ele repetia aquele apelido como se estivessem na frente das outras pessoas. Heloísa sequer lembrava-se qual havia sido a primeira vez que Leônidas a havia chamado assim, mas o que ela imaginou que seria uma forma de agir em público se tornou também um apelido quando estavam a sós.
- Eu sou a mãe dela. – Heloísa respondeu na defensiva. – Não precisa sentir muito por eu ter que cuidar da minha filha.
Ele suspirou e assentiu, pegando o coelho de pelúcia do berço de Clara, como se suas mãos não pudessem ficar vaziar. Sabia que o deixava magoado quando fazia isso, quando deixava claro que Clara era filha dela. Que Clara tinha outro pai que ele não sabia quem era, mas que estava longe de ser Leônidas.
- Logo ela começara a entender um pouco mais do mundo. – ele disse, em tom baixo e triste.
- Sei o que está insinuando. – Heloísa revirou os olhos. – Eu sei como cuidar dela, sei o que dizer na frente dela.
Leônidas colocou o coelho de volta no berço, se recusando a iniciar uma discussão. Ele tinha aquela característica pacificadora que a deixava ansiosa na maioria das vezes, como se a explosão que sentia prestes a acontecer em si mesma fosse de alguma forma errada ou descontrolada. Ela o viu observar aquele feixe de luz que entrava e caminhar até a janela, dessa vez fechando a cortina até o final.
Voltou para a cama dos dois e pegou um livro na cabeceira. Leônidas nunca dormia enquanto Clara estivesse acordada, mesmo que significasse um dia de trabalho exaustivo no dia seguinte. Heloísa finalmente focou em Clara, que mamava com os olhos fechados e com tanta força que foi impossível não sorrir. Suas bochechas estavam cada vez mais cheias, e o corpinho pequeno ficava mais pesado a cada dia.
Clara era seu milagre, seu pedaço do céu. A única verdadeira alegria de seus dias, a única certeza que tinha e seu amor maior. Os olhos da menina se abriram, fitando os de Heloísa e, como sempre, tudo parecia completamente certo. Depois de alguns minutos, mamar pareceu não ser mais a atividade mais fascinante da terra, e Clara puxou o cabelo de Heloísa, arrancando um sorriso da mãe.
Heloísa a ergueu levemente, mas os olhos da filha já estavam em Leônidas, que foi distraído da leitura pelos sons de Clara. O sorriso dele se abriu e Leônidas aproximou-se das duas, levando o rosto até onde as mãos da menina pudessem alcança-lo. Eram esses os momentos em que o coração de Heloísa dava um sobressalto, quando Leônidas ficava perto demais e completamente entretido com Clara.
O cheiro dos cabelos dele se misturava com o cheiro de bebê de Clara. Era familiar, diário, constante. Eram os sons das risadas de Clara, do riso baixo de Leônidas, que era interrompido por palavras que encantavam sua menina. E, como sempre, Clara acabava nos braços dele, com a cabeça apoiada no peito daquele homem que ocupava o espaço do pai dela.
Heloísa os observava todas as noites, observava sua menina adormecer nos braços de Leônidas, enquanto ela mesma se perdia observando um e outro, sabendo que no dia seguinte ele deixaria um beijo na testa dela antes de sair. Um beijo que ele imaginava que ela não sentia por estar adormecida, mas que era apenas parte de seu dia. Como era parte de seu dia vê-lo retornar do trabalho para aquela rotina tão deles.
Ela queria entende-lo. Queria entender porque a chamava de rosa e porque estavam casados. Queria entender se ele realmente dormia em um canto da cama ou se, caso ela deixasse, ele se espalharia ainda mais pela vida dela. Queria saber como a cabeça de Leônidas funcionava. Se, quando ele a encarava com aqueles olhos verdes gentis, ele também se perguntava coisas sobre ela.
Porque as vezes pensava como seria se tudo fosse diferente. Como seria viver um casamento de verdade com Leônidas. Perguntava-se se aquela gentileza no olhar mudaria ao saber a verdade. Se ele mudaria de opinião ao saber quem era o pai de Clara, ao saber a profundidade daquele segredo.
Era por isso que sequer dava asas aos pensamentos. Poderia aceitar aquele casamento, poderia aceitar a presença de Leônidas como pai de Clara, mas não poderia ousar mais nada. Porque haveria um dia que a curiosidade falaria mais alto, que a sombra do pai de Clara estaria entre eles. Se o mantivesse distante dela, a mudança de Leônidas não a machucaria.
Porque diria a verdade quando ele perguntasse. Assim como sabia que ele diria caso ela perguntasse o motivo que o levou a propor aquele casamento. Era esse o motivo de ela nunca ter perguntado. Porque sabia que Leônidas a olharia diferente ao saber de tudo.
Nem Leônidas, nem Afonso, e muito menos Violeta a perdoariam. Não se soubessem que o pai de Clara era Matias Tapajós, o marido de sua irmã.