prólogo

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passado

Parado no quintal, espreito pela janela o clima que governa em casa. Nunca é o mesmo. As coisas sempre mudam. E como uma camaleão, minha maior forma de defesa é passar desapercebido.

Ouço a vitrola antiga com música clássica tocando ao longe. Um longo suspiro escapa de mim antes que eu me dê conta. Meus globos vão parar tudo que é lado, em busca de um tipo de refúgio para onde eu poderia fugir. Não há, no entanto.

Todos os holofotes estão virados para nós. Eles me achariam em qualquer canto desse maldito lugar. Ela me acharia em qualquer canto. Me arrastaria de volta para o inferno. Ao contrário do que se espera, não me queimaria. O inferno seria gelado, sempre com aquela ameaça constante de a qualquer momento, sem que eu espere, as labaredas de fogo explodissem no lugar.

Sempre quando menos se espera.

— Não gostou da cor das janelas? — Ela aparece e estou ofegante. Estou tão ofegante que me engasgo. A primeira reação é manter os olhos abertos porque se eu piscar com força, ela vai entender que eu quero me esconder. E se tem algo que minha mãe é boa, é em farejar um fugitivo. — Está olhando há tanto tempo que me pergunto se não gostou.

Ovos.

Consigo senti-los embaixo de mim. Embaixo dos meus pés. Uso coturnos mas sinto cada ângulo oval por baixo. E mesmo que eu quebra somente um, ela escutará o som do rachado.

— Está boa. — Pigarreio. — Eu gosto.

Finalmente consigo reunir coragem para olhá-la. Não faço isso de cabeça erguida, nunca. Ela não pode pensar que confundo minha altura com poder. Minha cabeça está abaixada e a olho sob os cílios, poderia ser difícil enxergar corretamente nesse ângulo se eu já não estivesse acostumado a vida inteira a olhá-la com minha cabeça baixa.

— Então, vamos. — Ela passa a mão levemente enrugada pelo cabelo preto penteado estrategicamente pra trás. — Tem ervilhas e frango.

Retiro os coturnos no espaço da entrada. A luz da sala está ajustada, um tom amarelo escuro sobre a mesa que dispõe de um jantar feito por minha mãe. O caminho para a cadeira é quase mortal. Um passo, um suspiro, um movimento no ombro... qualquer movimento não calculado pode fazê-la pensar que estou cansado.

E isso... Não. Isso seria ofensivo.

Ela serve o suco nos copos e deseja um bom apetite. Eu preferiria comer a gororoba esquisita do refeitório do colégio.

Evito arranhar a louça com o garfo. Bebo o suco em goles cadenciados para não parecer sedento. E como devagar para não parecer faminto.

Quando tudo acaba, estou colocando a louça no lava-louças. Meu pai está aguardando as comidas em potes na geladeira.

O som aumenta e eu fecho os olhos por um instante. Eu odeio música clássica. É assustador, porra. Ela faz isso quando não quer que seus passos sejam ouvidos. E eu tento não pular de susto quando reparo nas pernas dela perto de mim.

Fecho a tampa do lava-louças e a encaro com um ar sugestivo no meu rosto como quem diz que está preparado pra fazer qualquer coisa que ela me pedir.

— Preciso de ajuda para alcançar uma prateleira alta na garagem.

Mordo um pedaço interno da minha boca de forma que ela não perceba. Aceno, consentindo.

Quando acendo a luz, a vejo apontar pra cima. Uma prateleira branca dispondo de latas de tinta. Não... Por favor, não.

— A terceira, da esquerda para direita. — Seu queixo é erguido. — Aquela é a cor das arestas da janela.

Eu subo na escada e agarro a lata de tinta. O sono zumbe em meus ouvidos mas eu o ignoro. O que mais posso fazer?

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⏰ Última atualização: May 17, 2022 ⏰

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