Dindi.

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É demasiado tarde, Violeta sabe. A faca enterrada no seu peito dificulta-lhe a tarefa de respirar para lá do que pensou ser possível. Será que foi isto que Eugénio também sentiu? Ah, Eugénio. Ia sentir tantas saudades daquele cabeça de bagre. Será que quem morre também sente a saudade?

O sangue começou a manchar a camisola branca, maculando a vestimenta. Tal como a alma de Violeta, clara como um dia de sol, ferida por tantas tragédias, perdas, culpas e dores. Será que quem morre também sofre?

As lágrimas escorrem-lhe desenfreadas. Não quer morrer. Alguém quer? Matias continua mergulhado em delírios, andando de um lado para o outro. Não importa. É demasiado tarde. Para ele e agora para ela. Sente a vida escapar-lhe das mãos.

Fecha os olhos e uma imagem surge e ela já não sabe se é imaginação ou realidade. Quem morre sabe? Quem morre continua a existir? Contudo, esta imagem é tão bela, tão doce, tão feliz e, simultaneamente, triste, que sente o seu peito doer em dobro.

Vê-se diante de um piano. Tudo ao seu redor é imenso e não sabe bem dizer se são nuvens ou outra coisa qualquer. A imagem está envolta numa bonita neblina, mas consegue ver-se sentada ao piano. Não está sozinha. Elisa está com ela. Há quanto tempo, minha menina. A sua primogénita veste o seu vestido preferido, pintado do azul que tanto amava (ou ama? Agora que estão juntas), ornamentado com pequenas flores brancas de tecido. Os seus cabelos semi-presos, os cabelos que são uma herança sua. Sentiu-se a chorar novamente. Minha menina, quanta saudade cabe no coração de uma mãe?

Sem saber como ou porquê, uma melodia começou a tocar e sem perceber já a cantava como tantas vezes fizera no passado. Um passado tão longínquo que virara uma realidade quase fantasiosa na sua memória. Um passado em que não havia loucura, em que ainda acreditava em contos de fadas, em que as suas filhas estavam seguras no seu abraço, onde nada doía nem custava. Nessa realidade ela cantava canções de embalar para as suas meninas. E ainda que uma diferença considerável de idades as separasse, esta melodia em especial fora entoada para ambas.

"Céu, tão grande é o céu

E as nuvens que passam ligeiras

Pra onde elas vão?

Ai, eu não sei, não sei

O vento que fala nas folhas

Contando as histórias que são de ninguém

Mas que são minhas e de você também"

A música sai-lhe dos lábios como tantas outras vezes e ela não consegue compreender muito bem o que está a acontecer, mas a sua filha, a sua menina que não vê há tantos anos, está ali e ela não mudaria nada, não trocaria nada por este momento. Elisa nada diz. Não é preciso. Os seus olhos carregam a serenidade de sempre e os seus lábios enfeitam-se com um doce sorriso. Está igual. Nela nada mudou. No rosto da sua filha a vida é jovem e o amor ainda sorri. Mais lágrimas caem pelo seu rosto. Costumava dizer que Elisa era o seu Dindi. Isadora também.

"Ah Dindi, se soubesses o bem que eu te quero

O mundo seria Dindi

Tudo Dindi, lindo Dindi"

Como que invocada, a companhia no piano desaparece e ao contrário de Elisa, o rosto de Isadora surge refletido no tampo do órgão. Percebe que são memórias vividas com a sua filha. Ela não está aqui porque está viva. Não consegue falar, não sabe porquê, mas o seu coração sussurra Seja feliz, Dorinha. Meu Dindi. Imagina como seria ter as irmãs reunidas depois de tantos anos. Conseguiria Dorinha por fim recordar a irmã? Irmã. Heloísa. Heloísa também é o seu Dindi.

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⏰ Última atualização: May 30, 2022 ⏰

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