O Homem de preto

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"Às vezes é preciso Tapar a boca, pois demônios cospem blasfêmias através das pessoas"

Não é conveniente citar meu nome e nem lhe dizer a minha cidade ou estado, pois isto pode por a prova a minha sanidade mental se descobrirem ser eu a autora dos fatos que vou apresentar. Por mais que finjamos não ligar para julgamentos o olhar do próximo queima sobre nós. Vivi longos anos da minha vida num lugar onde a criminalidade e a injustiça se tornaram uma rotina aceitável. Sempre sentimos raiva e medo pelo que nos é roubado, mas o sentimento maior por essa impotência social que nos consome é a indignidade. Perdemos o direito de ir e vir com nossos pares, e isto nos foi tirado com a mesma rapidez e audácia que os judeus foram arrancados de seus lares para os campos de concentração. Sou uma mulher de 33 anos e vivo neste lugar há 16 deles. Para a infelicidade dos residentes locais nos últimos cinco anos as coisas pioraram demais. Apesar de tais infortúnios o mistério que me envolve é ainda maior do que as marginalidades do meu dia a dia.

Há um ano um novo vizinho mudou-se para o meu prédio de 10 andares. Ele não falava muito e parecia ser um pouco mais velho que eu, talvez tivesse a minha idade, eu nunca soube. As únicas pessoas que o visitavam eram o pai e um irmão, ninguém mais vinha. Tal homem caminhava pelo nosso bairro com tranquilidade e parecia alheio a violência vigente. Durante o período de um ano de sua estadia se nos falamos pela soma de dias de uma quinzena foi muito. Ele era jovem e bonito e confesso que mesmo sem um conhecimento profundo de quem aquele desconhecido era algo no seu mistério me deixava atraída demais por ele. Talvez o fato de estar a quatro anos sozinha me ajudasse a olhar para um estranho com intenções subjacentes. Entretanto algo dentro de mim achava que a atração devia ter uma profundidade maior. Impulsionada por esses pensamentos desvairados certo dia deixei que a curiosidade me tornasse ousada. Decidi mesmo sem entender por que invadir a casa do vizinho misterioso enquanto ele não estivesse. Um detalhe sobre mim interessante; sou auxiliar de Necropsia e sei manusear com maestria objetos de pequeno porte para a abertura de saliências e corpos. Apesar de ser apenas uma auxiliar, com anos assistindo os legistas comecei a aprender muito sobre o assunto. Dito isto, não tive dificuldade em abrir a porta do meu admirado secreto. Porém somente depois que entrei na casa foi que pude perceber que eu não tinha um plano. Qual era o meu objetivo de entrar ali? O que eu iria investigar? Se ele usava drogas? Se era alcoólatra? Ou gay? Eu não sabia bem, mas não demorou muito para que rapidamente eu já tivesse uma resposta sobre o que queria. A casa não tinha muita coisa além do necessário para sobreviver. Uma cama de solteiro, um fogão, uma geladeira e uma escrivaninha com alguns livros. O maior deles era a bíblia sagrada. No cabide ao lado dela estava um dos segredos do desconhecido; uma batina de padre unida ao seu colarinho clerical. Então era por isso que ele não dava em cima de mim! O homem era casto. Mas aquela suposta santidade ainda não havia me convencido, e é neste instante que vem a parte que me desequilibrava na tentativa de entender.

Desde a mudança deste padre-vizinho ao meu bairro, relatos de um homem de preto com a face coberta por uma máscara e um manto, — um suposto Batman de plantão —, começou a alardear a circunvizinha. Entretanto mesmo com a presente violência já conhecida ele não era mais uma ameaça, ao contrário disto estava combatendo o crime local. Depois de invadir a casa do desconhecido comecei a juntar detalhes e fatos que antes não pareciam nada demais. Comecei a pensar que talvez fosse por isso que andasse tão alheio a violência, ele poderia certamente ser o tal misterioso homem de preto. Pode parecer loucura, mas fazia sentido para mim. Heróis anônimos geralmente são pessoas solitárias, com vínculos afetivos desconhecidos e uma vida com aparente normalidade social. Ninguém desconfiaria de um padre usando de violência para afugentar criminosos. Mas alguém estava fazendo isso, tinha que ser ele. No meu primeiro dia de investigação bastou encontrar sua batina e o colarinho branco para me tirar da escuridão. Porém minha obsessão por resolver o mistério estava começando a afetar o meu sono e logo me vieram os pesadelos noturnos. Em meus sonhos o homem de preto adentrava em meu quarto e me dizia para encerrar tais investigações, pois no fim eu não gostaria de encontrar a resposta que tanto desejava. Ele por algumas vezes também me dizia que nem tudo ao homem deveria ser revelado, pois aquele que trabalha no oculto muitas vezes está protegendo a normalidade do dia a dia de pessoas comuns. Sua postura era ameaçadora e eu não podia negar que aquele desconhecido mascarado me dava medo. O que me assustava mais era a sensação de que às vezes eu sentia estar acordada quando recebia estas mensagens, algo como uma paralisia do sono.

O Homem de pretoOnde histórias criam vida. Descubra agora