05. O renascimento

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- Fick dich! Verdammt schwein!

A alemã acordou berrando insultos. Percebeu que estava de volta ao interior da bolsa de couro. Derreteu-se em prantos diante de sua impotência. Dos infernos que a vida lhe trouxe, concluiu que esse estava sendo o pior.

- Scheiße... Hurensohn!

A penumbra no interior da carcaça de couro não lhe permitia avaliar o estado das fraturas. A textura da cicatriz da amputação, na altura em que o braço foi extirpado, sinalizou a cauterização ocorrida enquanto estava desacordada. O conjunto das dores, no corpo e na alma, proporcionou um sofrimento desconhecido, superando as piores torturas já sofridas no passado. Apertou levemente o inchaço no abdome. Constatou que, a cada pressão externa, parte da gosma azul ainda escorria de dentro de si.

Mesmo sob a mágoa de todas as avarias físicas, o que mais a perturbava eram os flashes constantes na lembrança, imprimindo a imagem do ser monóculo em sua mente, possuindo-a sob o domínio dos tentáculos.

- Warum... Warum... - questionou-se, com o queixo trêmulo anunciando um novo pranto.

Tentou raciocinar brevemente sobre todo o ocorrido, mas logo sentiu o ímpeto de fugir de suas próprias ponderações. Sua memória revisou os momentos que antecederam a captura. Fechou os olhos e retrocedeu mais. Buscou resgatar algum momento reconfortante de sua vida, mas era difícil recordar de algo que não fosse impactado pelos males da guerra, principalmente o desespero da fome.

Rememorou a imagem nítida da marcha dos soldados nazistas. Estremeceu. Sentiu uma tristeza intensa diante da lembrança do campo de concentração, mas acolheu a ironia de que nem lá sofreu mais do que nessa situação surreal.

O vasculhamento entre as recordações trouxe a lembrança do fuzilamento de sua família. Avançou dentro da mente. Viajou mentalmente até a última vez em que um guarda embriagado a arrancou do cativeiro coletivo. Se tratava de uma memória tão intensa que se evocava por si só. A brita e a neve flagelaram sua pele enquanto era arrastada, sem forças para se debater, puxada pelo braço esquerdo que até então possuía. Levada a sala da caldeira, sentiu um calor tão intenso que ignorou os pesares, pois fazia tempo que o frio não dava trégua aos judeus encarcerados.

Em estado de choque, sorriu, como se a dor pudesse ser bloqueada pela vontade. Cogitou que não havia mais espaço disponível para o sofrimento entrar. Nessa lembrança, achou o ponto que seria seu único momento de satisfação. Houve um estranho respiro. Vingança. Uma vingança com um gosto um pouco melhor, se comparado a quando evitou morrer de inanição, mordendo um pedaço da carne podre de um velho que não havia resistido ao cárcere.

Foi arrancada de suas memórias pelo balanço drástico da enorme bolsa onde se encontrava. Um feixe de luz entrou, junto da mão gigantesca do barqueiro. Ela se agarrou a um pedaço da corda que costurava o couro. Puxou o corpo para trás e saiu do caminho dos dedos enormes que tatearam ao redor. Com a parca e momentânea iluminação, foi possível ver o osso exposto na canela, bem como o tornozelo inchado devido a fratura da outra perna. Pressionou os olhos com força e tentou retornar para suas memórias, numa força inútil para abandonar o contexto atual, preferindo acessar os pesadelos do passado ao invés do que estava presente.

Voltou às memórias do guarda abusador. Ele acorrentou suas mãos na altura dos ombros, cada uma a um cano de ferro, mantendo seus braços apontados para frente. Ela fixou o olhar na fornalha à sua frente. Se concentrou no movimento das chamas e se esforçou para que esse fosse seu foco até que tudo acabasse, na tentativa de fazer sua mente evadir do corpo. Seu quadril foi puxado para trás, com agressividade, deixando-a com o tronco inclinado para frente e o peso do corpo sustentado pelas algemas. A calça listrada foi puxada, mas não cedeu, pois havia um cadarço bem amarrado em torno da cintura. Impaciente, o carcereiro nazista deu uma golada em sua garrafa, pegou um canivete no coldre, beijou a suástica cravada no cabo do objeto e investiu contra o tecido. Passou a lâmina de cima para baixo, na parte de trás da calça. Ela sentiu o corte riscando fundo em sua nádega durante a destruição do tecido. Esforçou-se para não demonstrar qualquer dor, pois àquela altura já entendia os mecanismos do sadismo. Olhou para baixo e notou o vermelho do sangue encharcando o pano restante de sua calça, escorrendo e formando uma poça no chão. Comemorou, em seu íntimo, o caimento do piso, que afastava o sangue da direção das calças arriadas do guarda, pois não desejava lidar com as consequências ainda piores dele ter seu uniforme manchado.

A protegida e o demônioOnde histórias criam vida. Descubra agora