A Ponte do Recomeço

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Laura Mendes é carioca, mas mudou-se para o Maranhão em 2010. Depressiva desde a infância, nunca foi adepta a grupos. Porém, seus pais acreditavam que uma hora ou outra isso passaria.

Num entardecer de agosto, ela saiu sem saber para onde ir. Passou por praças, ruas históricas e balneários. Por volta das onze da noite, chegou na ponte principal da cidade, denominada Ponte do Recomeço.

Não aguento mais, preciso acabar com esse sofrimento, pensava.

Enquanto refletia, subiu pelos arcos da ponte, que tinha vinte metros de altura. Sentada no ponto mais alto, observava as luzes dos postes, pois, naquele horário, já não havia ninguém nas ruas.

Olhando para os próprios pés, decidiu-se. Mas, antes de fazer o que julgava certo, avistou alguém na parte de baixo.

— Ei! O que está fazendo...? Saia daí, é perigoso! — acenou o estranho, aos gritos.

O rapaz estava fardado, era um carteiro. Ignorando-o, ela ficou de pé, ameaçando se jogar.

Diante daquela atitude, ele demonstrou desespero. Com cuidado, tentou dialogar. E enquanto ganhou a atenção dela, subiu pelos arcos.

— Acredite, não vale a pena! — disse, gesticulando com as mãos.

— Você não me conhece, não me diga o que fazer — respondeu, com os olhos encharcados.

— Sei que não te conheço. Mas garanto que este não é o melhor caminho.

Dito isso, o carteiro aproximou-se, porém, foi impedido por causa de um gesto dela com a mão.

— Fique onde está, já disse que não te conheço. Qual é o seu problema, cara? Por que se importa comigo?

Confrontado, ele ficou em silêncio por volta de um minuto e, quando voltou a falar, comentou:

— Eu já estive na mesma situação que você. Não é a primeira que tenta fazer isso.

Naquele momento, Laura olhou para frente, pondo o cabelo por trás da orelha.

— E o que te fez desistir?

— Problemas emocionais, financeiros...

— Não, você não entendeu minha pergunta. Por que desistiu de pular?

— Não desisti... — respondeu, evasivo.

De início, Laura não entendeu, mas permitiu que se aproximasse.

— O que te trouxe aqui? — perguntou ele.

— Depressão, cobrança dos pais, sufoco. Vivo uma vida que não é minha.

— E o que te impede de viver a sua?

— Para um estranho, você pergunta demais — secou as lágrimas com os dedos.

— Prazer, meu nome é Júlio Recomeço — estendeu a mão.

— O meu é Laura — retribuiu o gesto.

Que tipo de mãe colocaria o sobrenome do filho de "Recomeço"? Pensou.

— Então, agora que não sou tão estranho assim, poderia dizer o que te impede de viver sua vida?

— Gostaria de ter a resposta... É que os outros ficam...

— Não deixe que lhe digam como deve ser. Não é errado pensar em si mesma, desde que ninguém saia ferido.

— Mas é isso que faço, eu afasto as pessoas, machuco sem perceber.

— Então pretende se machucar desta forma tão covarde? — apontou para o chão.

Naquele instante, começou a chuviscar. E com o passar dos minutos, os pingos se intensificaram.

— Vem! É hora de descer. Seus pais devem estar preocupados — estendeu a mão novamente, convencendo-a a descer.

Mesmo retrucando, Laura cedeu. Ela viu esperança no olhar de Júlio, sentiu algo diferente. Pela primeira vez, acreditou em si mesma.

Assim que desceram, os pingos pararam. E por alguns instantes, sentiu-se perdida. Ela quis agradecer, mas não sabia como.

Júlio apoiou a mão sobre o ombro dela e disse:

— Vá! Busque sua felicidade e só volte quando encontrá-la — sussurrou.

Em silêncio, ela seguiu seu caminho. Ao chegar em casa, viu que os pais não estavam. Então, catou suas roupas, fez as malas e seguiu para a rodoviária. Lá, pegou o primeiro ônibus para Belo Horizonte. Laura nunca estivera naquela cidade, mas era isso que queria, recomeçar num local onde ninguém a conhecesse.

Três anos depois, ela regressou para Caxias. Reconciliou-se com os pais, aproveitando o momento para apresentar-lhes ao neto e ao marido. A vida dela havia mudado da água para o vinho, nem parecia aquela jovem frágil de antes.

Em janeiro de 2015, Laura procurou Júlio. Lembrou da farda usada por ele, então, buscou informações na sede dos Correios.

— Bom dia, senhor. O Júlio ainda trabalha aqui?

— Júlio...? Ah, sim... — atrapalhou-se entre os papéis. — Ôh, pica-pau, vem aqui!

Dito isso, um rapaz de topete apareceu.

— Algum problema? — perguntou ele, equilibrando algumas caixas.

— Esse não é o Júlio que estou procurando.

— Então veio ao lugar errado. Ele é o único Júlio que trabalha aqui.

Laura ficou confusa.

— Deve ter algum engano — gaguejou. — O Júlio que conheci tinha...

Descreveu o rapaz, o local e a data.

O homem continuou negando. Mas, depois de alguns minutos de insistência dela, virou-se assustado enquanto perguntou:

— Sabe o sobrenome dele?

— Recomeço! Nunca esqueceria um sobrenome assim.

O homem ficou boquiaberto. Como poderia ser? Segundo ele, Júlio foi um carteiro bem conhecido na cidade. Tinha apenas 22 anos quando se atirou da ponte, na virada de 1999. Era tão querido que, em sua homenagem, alteraram o nome daquela construção.

Ao saber da história, Laura ficou sem reação. E, em casa, não comentou sobre o ocorrido.

Numa tarde de sexta-feira, ela pediu que o marido a levasse até a ponte. Ele desconhecia a história e, mesmo assim, atendeu o desejo da esposa.

Naquela semana, a ponte estava em reforma, por isso, não chegaram tão perto com o veículo.

Ainda que houvesse restrições, Laura conseguiu autorização para se aproximar da obra. Entretanto, não pôde subir pelos arcos.

De repente, ela sentiu uma leve brisa pairar pelos arredores. Sabia que Júlio estava ali, embora não conseguisse vê-lo.

— Obrigada, Júlio... Obrigada por me mostrar um novo começo.

O marido não fazia ideia do que estava acontecendo, mas a criança que segurava no colo apontou para o lado da mãe, pronunciando suas primeiras palavras. Júlio, por sua vez, cumpriu sua sentença. Ele fez por alguém o que não fizeram por ele. Com isso, descansou em paz.

A Ponte do RecomeçoOnde histórias criam vida. Descubra agora