Capítulo 1

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Lena acordou deitada em uma banheira. Suas pernas estavam levantadas, a bochecha, pressionada junto ao frio metal da torneira. Um lento gotejar ensopara o tecido sobre seu ombro e umedecera os cachos dos cabelos. O restante do corpo, por sorte, estava completamente seco. O pescoço estava rígido; os ombros doíam. Ficou de joelhos com dificuldade, com a pele deslizando no esmalte da banheira, e empurrou para o lado a cortina do chuveiro.
Na pia havia uma pilha de copos plásticos, garrafas de cerveja e toalhas de mão que pendiam para um dos lados. A luz do sol do fim do verão, brilhante e cor de manteiga, fluía vinda de uma pequena janela acima da privada, fluxo este interrompido somente pelas sombras oscilantes formadas pela guirlanda de alho que pendia acima dela.
Uma festa. Certo. Ela estivera em uma festa ao pôr do sol.
- Argh! - disse, com os dedos na cortina para se equilibrar arrancando três anéis da vara com seu peso.
Ela lembrou-se de se arrumar, colocar as pulseiras metálicas que ainda retiniam de encontro umas com as outras quando se mexia, e do All Star preto. Lembrou-se de como havia passado o delineador preto sobre os olhos de um azul indistinto e de ter dado um beijo no espelho para ter sorte. Depois disso, tudo ficara levemente borrado em sua mente.
Apoiando-se para levanta-se, Lena foi cambaleando até a torneira e borrifou água no rosto. A maquiagem estava toda borrada, o batom manchava a bochecha e o rímel espalhava-se pelo rosto como um borrão. Os cabelos negros eram uma bagunça emaranhada que ela conseguiu dar um arruma com uma escova de cabelo que tinha ali. Mas ainda assim ela parecia um panda zumbi.
A verdade era que Lena estava bem certa de haver desmaiado no banheiro enquanto evitava seu ex, Chris. Antes disso, ela dançara bastante e tomara alguns goles de uma garrafa de uísque. Chris havia provocado Lena ao dar uns amassos na nova namorada rabugenta dele, a dos cabelos cor de morango, que usava uma coleira de cachorro que ela encontrara na entrada.
Soltando um suspiro, Lena abriu a porta do banheiro, que nem ao menos estava trancada, então as pessoas deviam ter entrado e saído dali a noite toda, com ela bem ali, atrás da cortina do chuveiro. Ela foi saindo de mansinho em direção ao corredor. O cheiro de cerveja tomava conta do ar, junto com outra coisa, algo metálico e doce como carne. A televisão estava ligada na outra sala e ela podia ouvir a voz baixa do locutor de um noticiário enquanto caminhava em direção à cozinha. Os pais de Adam não se importavam que ele desse festas ao pôr do sol na velha casa de fazenda deles, de modo que havia festa lá quase todo fim de semana. Lena fora a muitas dessas festas, e as manhãs eram sempre repletas de gritaria e chuveiradas, café sendo fervido e tentativas de preparar um café da manhã com alguns ovos e restos de torrada.
Tinham longas filas para os dois pequenos banheiros, com pessoas batendo nas portas se alguém demorasse muito tempo por lá, todo mundo precisava tomar banho e trocar de roupa. Com certeza isso teria feito com que Lena acordasse. Mas se ela estava dormindo enquanto tudo isso acontecia e todo mundo já tinha ido para um restaurante, eles estariam rindo muito dela. Estariam fazendo piadas sobre ela, inconsciente na banheira, e fosse lá o que tivessem feito naquele banheiro enquanto ela dormia, e mais, talvez, fotos, todos os tipos de coisas idiotas que ela teria de ouvir repetidas vezes assim que as aulas na escola começassem. Lena simplesmente teve sorte de não terem feito um bigode nela.
A cozinha estava vazia, com cerveja derramada e refrigerante de laranja formando poças nas bancadas e sendo absorvido por um pouco e batatas fritas de saquinho. Lena estava esticando a mão para pegar o bule de café quando, pelo chão de linóleo preto e branco, logo ali do outro lado do batente da porta da sala de estar, ela viu a mão de alguém, com os dedos estirados como se a pessoa estivesse dormindo. Lena relaxou. Ninguém estava acordado ainda, isso era tudo. Talvez ela fosse a primeira que estivesse em pé, embora, quando pensou novamente no sol que entrava pela janela do banheiro, ele parecesse alto.
Quanto mais ela contemplava aquela mão mais ela notava que parecia estranhamente pálida, com a pele azulada em volta das unhas. O coração de Lena começou a espancar o peito, era seu corpo reagindo antes que a mente entendesse o que havia acontecido. Lentamente ela colocou de volta o bule sobre a bancada e forçou-se a cruzar o chão da cozinha, com passos cautelosos, até que estivesse além do limiar da sala de estar. Então ele teve que se forçar a não gritar.
O carpete marrom-amarelado estava duro e negro com faixas de sangue seco, respingado como em um quadro de Jackson Pollock. Havia faixas de sangue nas paredes, e marcas de mãos com sangue manchavam as encardidas superfícies beges. E os corpos. Dúzias de corpos. Pessoas que ela via todos os dias desde o jardim de infância, pessoas com quem havia brincado de pega-pega, por quem havia chorado e que havia beijado, jaziam em ângulos estranhos, com aqueles olhares fixos como se fossem fileiras de bonecas na vitrine de uma loja.
A mão perto do pé de Lena era de Sarah, uma bonita de gorducha garota de cabelos cor-de-rosa que planejava ir para a escola de artes no ano seguinte. Os lábios dela estavam levemente separados, e seu vestido de verão azul-marinho com estampa de âncoras estava um tanto rasgado. A garota parecia ter sido pega enquanto tentava se arrastar para escapar. Um dos braços estava estendido e, do outro, sangue gotejava no tapete.
Lena encontrou Adam em um sofá, com os braços jogados por cima dos ombros de uma garota, de um lado, e de um garoto, do outro, e os três estavam com marcas irregulares de perfuração na garganta. Todos estavam com garrafas de cerveja perto das mãos, como se ainda estivessem na festa. Como se provavelmente os lábios azulados deles fossem dizer o nome de Lena a qualquer momento.
Coisas assim aconteciam na Europa, em lugares como a Bélgica, onde as ruas estavam apinhadas de vampiros e as lojas não abriam antes de escurecer. Mas não aqui. Não na cidade de Lena, onde nem um único ataque sequer havia ocorrido em mais de cinco anos. E, ainda assim havia acontecido. Uma janela fora deixada aberta à noite, e um vampiro entrara sorrateiramente por ali.
Lena passou um sermão a si mesma: tinha que levantar do chão e entrar no quarto de hóspedes, onde estavam as jaquetas empilhadas em cima da cama, fuçar nos arredores até encontrar sua bolsa, com o celular e as chaves do carro.
Forçando-se a ficar em pé, ela começou a seguir seu caminho pelo chão tentando ignorar o som das pisadas dos pés no tapete, tentando não pensar no cheiro de decomposição que a sala emanava. Lembrou-se que os vampiros só saiam á noite e ainda havia sol lá fora, o que a fez imaginar se ainda poderia haver um vampiro na casa, o vampiro que havia assassinado todas aquelas pessoas e que de alguma forma, não a tinha visto. Porém agora ele a mataria, caso a ouvisse se movendo.
Com cuidado, com muito cuidado, tirou cada uma das pulseiras reluzentes de metal, colocando-as sobre o tapete de modo que não fossem tilintar quando ela se movesse. Desta vez, enquanto cruzava a sala, ela estava ciente de cada rangido do assoalho, de cada respiração rascada. Lena imaginou bocas com presas nas sombras; imaginou mãos frias abrindo caminho pelo linóleo da cozinha, unhas arranhando seus tornozelos enquanto ela se arrastava na escuridão. Pareceu uma eternidade antes de ela chegar até a porta do quarto de hóspedes e girar a maçaneta.
Então, apesar de todas as suas boas intenções, ficou ofegante. Chris estava atado à cama, seus pulsos e tornozelos estavam presos aos postes da cama com cordas de bungee-jump, e havia um pano amarrado na boca dele, mas estava vivo. Por um longo instante, tudo que Lena conseguiu fazer foi ficar com o olhar fixo em seu ex-namorado, com o choque de tudo aquilo caindo sobre ela de uma vez. Alguém havia prendido com fita sacos de lixo sobre as janelas, bloqueando a luz solar. E, ao lado da cama, amordaçado e acorrentado, estava outro garoto, de cabelos tão negros quanto tinta nanquim. Ele ergueu o olhar para ela. Seus olhos eram brilhantes como rubis tão vermelhos quanto.

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⏰ Última atualização: Apr 26, 2015 ⏰

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