Andar de trem era sempre bom para mim. Uma experiência estupidamente simples e relaxante para minha mente inquieta. Eu precisava fazer uma viagem longa até a loja de Dara Khoda, que me fornecia materiais todo mês. Já com todo o material necessário, acomodada em minha poltrona, eu permiti que minha mente insone entrasse em alguns devaneios e pensei nas tintas a óleo que estavam na minha bolsa naquele momento. Eu ainda não tinha muita experiência com tinta a óleo. Somente seis telas pintadas.
Duas abstratas e as restantes, apenas tentativas de reproduzir o rosto humano com maestria. Uma vez, quando vadiei pela cidade durante uma exposição, ouvi um velho pintor dizer que a prática com a tinta a óleo deve ser feita em estado de êxtase. Raiva ou paixão, medo ou coragem. Precisa ser algo intenso.Soojin queimava algo em mim que eu ainda não sabia explicar o que era, para ser exata. Mas inundava meu peito, acelerava meu coração um pouco mais do que o normal.
Quando desci do trem e fiz mais um longo percurso até minha casa, decidi que iria dedicar minha tarde à tela de Soojin. Usaria de base o meu último desenho dela, no Café Inglês. Eu não tinha ideia de como iria executar aquela missão. Era meu desejo eternizá-la naquele quadro. Parecia uma obsessão secreta ao mesmo tempo em que Soojin tinha total consciência do que despertava em mim.
Sentei-me no banco no qual passaria as próximas horas e abri as tintas, abrindo a gaveta de pincéis em seguida. Respirei fundo ao olhar todo o material disposto em cima da pequena mesa que eu costumava usar para pintar. O cavalete sustentava a tela em branco à minha frente.Me levantei e coloquei um disco na vitrola enquanto me servia de um bom vinho. Vesti minha calça de pintura e tirei minha camisa, relaxando por um instante. Fechei os olhos ao som do piano, me recordando de algumas das vezes em que gravei perfeitamente sua expressão facial enquanto andava pelas ruas. Me recordei de quando ela se despiu para mim, de seu olhar intenso sobre mim enquanto eu a congelava no tempo com meu grafite, nua sobre minha cama, impregnando meus lençóis com seu perfume e me obrigando a gravar na memória os mínimos detalhes de seu corpo. A marca de nascença na costela direita, as pintas no rosto limpo.
Depois que fiquei mais velha, entendi que meu processo de criação — especialmente com as telas — começava bem antes do ato de simplesmente pintar. Existia uma poesia oculta no ato de pintar uma tela. Eu concebia um esboço na minha mente do que queria fazer e então simplesmente deixava minhas mãos comandarem o incrível jogo de movimentos e cores que formariam então a minha tela. Comecei pelo fundo. Mal consegui notar quando minha mão começou a se mover com pincel de um lado para o outro na tela, que agora ganhava vida pouco a pouco diante dos meus olhos. Eu conseguia vê-la na minha frente. Seu rosto maquiado, a boina vermelha na cabeça, deixando a mostra parte de seus cabelos escuros. A boca entreaberta, as mãos enluvadas segurando o cigarro na piteira. Mesmo focada no início da tela, sua imagem estava fresca e vívida na minha mente. Não me esqueci de nenhum detalhe.
Eu levei exatos sete dias para produzir aquela obra por completo. Pensei nela por um instante. Entrei em estado de frenesi e comecei. A Mulher de Boina, a que considero minha primeira tela. Duas horas da tarde de um domingo.O negro de seus olhos, da dor, dos mistérios e histórias que ela escondia de mim com certo desleixo. O vermelho do desejo tortuoso e oculto que incendiava meu coração. O pincel e a tinta. A tela e ela.
Exatamente no domingo, às quatro da tarde horas e cinco minutos, eu finalizei a tela de Soojin. A sensação que percorria meu corpo era puramente de êxtase, satisfação. Eu havia terminado. Foi o meu melhor trabalho do ano. Até os dias de hoje, A Mulher de Boina é venerada por muitos. A grande maioria não faz ideia de que essa mulher foi o grande amor da minha vida. Outras já especulam que eu vivia um amor platônico, já que outras telas de Soojin foram feitas por mim ao longo dos anos. Foram dias intensos dedicados àquela obra. Eu senti muitas coisas enquanto pintava aquela tela. Coisas que ainda não sei explicar com precisão depois de todos esses anos.Passei bons dias reclusa em meu apartamento, sem atender o telefone e sem sair para as ruas. Me dediquei totalmente ao meu trabalho. Certa noite, enquanto a tinta secava, a escuridão engoliu Nova Iorque, e eu resolvi que precisava fazer alguma coisa. Depois de um banho demorado e merecido, eu senti a exaustão das horas de dedicação abalando meu corpo. Nem mesmo por isso deixei de ir aonde precisava ir. De cabelos lavados, eu os penteei com uma dedicação estúpida e procurei em meu guarda-roupa por uma roupa decente o suficiente para vestir. Com as minhas roupas de homem, eu suspirei ao gostar finalmente do que estava vendo no espelho. Me equilibrei em cima dos saltos altos e peguei o casaco. O casaco dela. Não ficava tão bem em mim. Para ser honesta, aquela peça era exclusiva de Soojin. Ninguém além dela jamais ficaria tão bem naquele casaco quanto ela.
Nervosa e um tanto quanto acanhada, eu caminhei até sua casa a passos lentos, entre um tropeço e outro, carregando um cigarro entre meus dedos enquanto pensava no que estava me metendo. Foram os quinze minutos mais tensos da minha vida. Quando parei em frente a casa, notei as luzes acesas. Sorri, inevitavelmente. Fiquei feliz por ela estar ali. Avancei em direção a porta e bati duas vezes, suavemente. Senti meu coração disparar quando ouvi passos e então a maçaneta girou. Encontrei uma Soojin aparentemente tranquila, descalça e de vestido vermelho; com uma taça de vinho branco na mão. Um sorriso rasgou seu rosto, exibindo os dentes brancos para mim ao ver o casaco nas minhas mãos.
— Você disse que queria conhecer a Soojin além das más línguas dessa cidade.
— É exatamente isso que vim fazer aqui.
— Estou honrada pela sua decisão — ela disse enquanto mordia o lábio discretamente, me dando abertura para passar pela porta — Seja muito bem-vinda, ma belle.★
EU ATRASEI EXATAMENTE UMA HORA E QUARENTENA MINUTOS PRA ATUALIZAR, mas foi porque eu passei mal horrores hoje mas já tô melhor.
A atualização foi curtinha porque foi o melhor jeito que encontrei pra dividir este capítulo e o próximo, sem ser tão longo assim. O próximo vai ser maior e acho que vocês vão gostar. A próxima atualização marca o início da aproximação das duas.
Obrigada pelas mensagens de carinho e pela compreensão e paciência que vocês tem comigo, isso significa muito pra mim.
No mais, avaliem o capítulo e digam o que acharam da playlist. Pra quem ainda não conferiu, aqui o link:https://youtube.com/playlist?list=PLZejTuG3VFTMtcQCaVacM7urSaIbXJ8GB
É isso, espero que tenham gostado! Até a próxima! ❤
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As Telas e Elas
DiversosReclusa em sua casa, a artista de sucesso Yeh Shuhua agora vive longe das exposições. Tudo o que lhe restou foi o dinheiro, a admiração e o ódio de alguns que a admiravam demais para admitir. Sem filhos e herdeiros, ela vive sozinha. E apesar do ta...