O Demônio

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Era assim que o chamavam. "Onde estão seus chifres, coisa podre?", diziam os caçadores. "Consigo sentir o cheiro de enxofre de longe", dizia a senhora que distribuía o peixe nas portas dos mais necessitados.
Fogo morava só. Sua mãe havia morrido ao lhe dar a luz. Seus avós o rejeitavam, como um mau agouro. A única pessoa que lhe tratava como um ser humano era o velho Chrono. Em segredo, pois precisava manter as aparências caso não quisesse ser expulso também. A família da qual sua mãe descendia era uma família de fadas, a nobreza deste mundo. E o quão imundo não devia parecer para eles. Os faéricos deslizavam em roupas brilhantes, cavalgando animais enfeitados com flores e joias. Todos os veneram como seres abençoados que trazem prosperidade à vila Valadar.
É óbvio que tratariam como lixo alguém como ele. Nascido de uma profanidade tão horrível. Uma mancha na história destes seres nobres e belos. As fadas não toleravam misturar seu sangue com a plebe. A simples menção da união de um homem com uma fada causava nojo em todos os seus adoradores.
O único motivo pelo qual Fogo não estava morto era Chrono. Nem mesmo as fadas e seus adoradores ousariam ir contra ele. As fadas podiam trazer boa sorte, mas era ele quem mantinha a barreira em pé e protegia a vila do mundo lá fora.
A vila era um lugar peculiar. Ela existia de forma tridimensional ao redor de uma enorme árvore, a Grande Valadar. A vila tinha esse nome por conta dela. Outras árvores de porte semelhante serviam de muralhas, fechando um círculo ao redor da principal com grossas raízes e cipós. Os únicos que tinham autorização para deixar a vila eram os caçadores faéricos. Homens e mulheres que buscavam alimento no mundo exterior, enfrentando as cristuras medonhas que assustavam as crianças.
Nenhum deles ficou vivo por tempo o suficiente para se tornar uma lenda. Nas histórias que Fogo ouvia, eram necessários vários para que sequer uma criatura fosse derrotada.
- Isso é porque eles desejam ser heróis, Fogo - o velho Chrono dizia. - A maior parte dessas criaturas só não quer ser incomodada, como nós não queremos. Fazemos de tudo para proteger nosso lar.
- E por que atacamos, então?
- Você não ouve o que eu falo, moleque? Eles querem ser heróis. Todos esses idiotas querem voltar pra casa com uma cabeça de monstro pra colocar na parede.
- Qual o sentido disso?
- Nenhum, Fogo... - o velho suspirava, - Nenhum...
Duas construções chamavam a atenção na vila: o Templo das Fadas, que fica na copa da Grande Valadar; e a Torre de Chrono, que fica no extremo Sul.
O Templo parecia um grande jardim suspenso com flores pulsantes que espiralam em todas as cores. Para os que olham de fora, não é possível diferenciar seus andares ou cômodos. As plantas se mexiam, como que criando um caleidoscópio. Isso era ao mesmo tempo arte e guerra, dizia Chrono.
- É belo. Muito belo. Mas é feito com um motivo mais importante. Caso alguém ataque, as pessoas no templo podem atacar sem serem percebidas. Eu mesmo encantei algumas daquelas flores, então nem pense em chegar perto. Esse jardim é um matadouro.
Outra construção impressionante era a torta torre roxa que parecia fundida com as raízes e cipós da muralha natural. Como uma colossal torre de vigília, o prédio se erguia por centenas de metros de altura. Era lá que a barreira de Chrono se formava, e somente pela torre era possível acessar a vila.
Como Chrono estava sempre viajando, cabia a Fogo prestar atenção no portão. Essa era a desculpa para que ele permanecesse sob a guarda do mago. Para as fadas, ele era só um porteiro. Para Chrono, ele era seu filho e aprendiz.

Mas desde que cometeu aquele erro, Chrono nunca mais conseguiu passar mais de dois dias consecutivos na torre.
Qual erro?
Era uma tarde como outra qualquer, e Fogo abriu os portões para uma patrulha.
- Chame ajuda, menino demônio!
Um dos caçadores estava com metade do braço completamente congelado.
Quando Fogo voltou com o curandeiro, os faéricos estavam gritando uns com os outros.
- Você podia ter atirado nele antes!
- E você podia ter sido menos lerdo!
O curandeiro estava curioso, assim como Fogo, mas o menino temia os caçadores. O especialista em medicina da vila era um plebeu como ele, mas era mestre em cura e ervas. Todos o respeitavam. Era um jovem loiro e de sorriso fácil chamado Gauge. Seu segredo? Fogo o conhecia. Ele adorava fofocar sobre as pessoas que curava. É claro que iria fazer perguntas.
- O que congelou o seu braço assim!?
- Aquele filho da puta! Como ele ousa!?
- Nós encontramos um porco gigante, e estávamos prontos pra acabar com ele.
- E aí, do nada, ele caiu no chão morto, com uma estaca de gelo no pescoço.
- Vocês viram quem atirou ela?
- Não a princípio, mas um cara se aproximou do corpo. Ele tinha uns chifres estranhos na cabeça, então achamos que era um demônio.
- Eu me aproximei pra perguntar quem ele era e, na hora que eu toquei o braço dele, meu braço congelou!
- Nós nos armamos pro combate, mas ele simplesmente desapareceu com o porco.
Fogo estava impressionado. Nunca tinha ouvido falar de alguém com magia tão poderosa. Chrono era capaz de criar barreiras, mas a magia era mais das árvores que dele, não duraria numa luta contra caçadores faéricos.
- Você disse "chifres"?
- Ficou interessado, é? Acha que é um dos seus amigos demônios?
- Eu não tenho amigos demônios...
- Cala a sua boca, moleque! Antes que eu descongele o meu braço na tua cara!
Fogo se afastou assustado.
- Não vai demorar, Fierce. Eu vou colocar essas ervas no seu braço e a magia vai se desfazendo. Tente manter ele congelado até tudo ser revertido, ou vai perder o que derreter.
- É sério? Tem alguma coisa gelada por aqui?
- O Sol nem entra aqui direito. Evite fogueiras e vai ficar tudo bem.
- Que merda, hein...
- Eu dou no máximo umas oito horas pra voltar ao normal. Você bem que podia tirar um cochilo.
- É o que eu vou fazer. Obrigado.
Eles juntaram suas coisas e se prepararam para sair.
Quando Fierce passou por Fogo novamente, cuspiu no chão.

- Sabe, Gauge... Se eu me tornasse um mago poderoso igual esse cara dos chifres. Nenhum deles me trataria assim.
- Ah, é? E você vai fazer isso como?
- Talvez o Chrono possa me ensinar...

E esse foi o erro.
Por mais amável que Gauge parecesse, ele era tão podre quanto o resto dos adoradores de fadas. Não demorou para esta curta conversa chegar nos ouvidos dos nobres.

Já faziam dois meses desde que Chrono pisou na torre pela última vez. Provavelmente mandaram ele pra caçar o tal mago chifrudo. As raízes da muralha estavam tortas e cheias de musgo sem Chrono ali para cuidar delas.
Será que eu consigo cuidar da muralha enquanto o Chrono tá fora? Isso com certeza iria fazer eles me reconhecerem...
É triste reconhecer, mas a esperança no coração desta criança talvez tenha sido sua maior perdição.

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⏰ Última atualização: Jul 26, 2022 ⏰

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