capítulo único: hurt.

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contemplo de soslaio pela janela você caminhar em passos lentos, acompanhando a brisa repentina... seus sapatos límpidos se mancham com a poeira que corrompe meus sentidos. e dói. sei que não fui o único a sair machucado disso, minghao. porém é mais fácil ser egoísta o suficiente para pensar somente em mim e no que nos distanciou.

meu egoísmo entorpecido crê veementemente na naturalidade culposa que você teve. entretanto, nunca existiu um momento em que cometeu algum mal contra minha podridão suscetível a manchar seu resquício pueril de caridade adornando minha solidão.

caminhar em uma ponte insalubre nas pontas dos pés não é simples, mesmo que possua a maior estabilidade visível nesse vasto mundo. pisar em falso faz com que se segure nos corrimões com tamanho afinco, prezando por viver e quem sabe, continuar se arriscando por outra pessoa completamente desvairada meticulosamente.

sua bochecha estava ferida e eu era individualista de forma exacerbada. o último curativo que tinha em mãos, utilizei no meu próprio coração; sem cogitar que o seu também carregava lamúrias, doendo com os tropeços. o carmesim escorria em sua face e eu permanecia com meu ser agonizante dilacerando em aflição ínfima.

era um escárnio ter você sempre atrás de mim, minghao. singelo e obsequioso, esforçava-se para estar ao meu lado e afagar minhas madeixas desamparadas. e tudo que lhe proporcionava como retribuição de gentileza tão sutil era mais uma carranca e lágrimas descompensadas, que lhe sucumbia aos frangalhos. mantinha-se forte e cheio de compostura me acolhendo em seus braços, mas falsidade se reconhece em poucos nuances. outrora, já dissimulei estabilidade mental através de silêncios gritantes. não tardou a reconhecer seu padrão de ações, minghao. porém, meu egoísmo era tanto que não conseguia mais. vociferava minha amargura instintivamente.

você constantemente recolhia todos os quebras-cabeça que chutava e me entregava montados, com a calmaria de sentar-se por horas e organizar o que não era de sua responsabilidade - nunca foi, porém você admitiu como se fosse seu escárnio. porém já não me apetecia imagens grandiosas, o miserável se firmava como estaca em meu peito nu e contentava-me somente naquilo que me restava em uma caixa retangular: vazio.

você tentou; tentou inúmeras vezes me impedir de sabotar o próprio chão em que cruzava. a imodéstia me levava a estaca zero agilmente a medida que sua diligência era em vão e delimitava mais um fracasso de minha parte lhe desmanchando mais uma vez com incongruência.

nunca pude afirmar com palavras concretas além do meu abstrato interno o que você significou para mim. mas o incômodo de ter alguém tão extraordinário próximo assolava repulsa imediata no meu modo de lidar contigo.

por isso que quando questionam, retruco com rispidez... e enuncio sentimentos repugnantes. não é exatamente o que sinto, todavia, não é de toda mentira. eu te abomino; abomino por ter estendido e segurado minhas mãos decrépitas, enquanto essas tão secas, esfoliavam a sangrar as suas. você foi tão egoísta quanto eu em ceder sua vitalidade a um garoto inconsequente.

joguei cada pecinha na enchente que ocorreu recentemente. elas se foram, no meio fio, como barquinhos de papel. mas elas são tão resistentes quanto, a ponto de ressurgir na frente de casa destruídas.

você também deu as caras. atendi a campanhia frenético, almejando desaparecer se lhe visse próximo naquele estado. os cabelos úmidos, os olhos acompanhavam. suplicava que fosse a chuva. não era. seus orbes que desaguavam em minha frente acompanhado de soluços.

poderia te estender um guarda-chuva e proteger seu corpo miúdo, mas estaria lhe perfurando em poucos segundos com a ponta do tal. me conheço mais que ninguém. fechar a porta e te ignorar era o caminho mais simples, minghao. não gosto de corroborar para o dilema do porco espinho. quanto mais se aproxima, mais se machuca e mais machuca os outros. é efêmero e inegável o caos que estava criando na sua mente que já abdicava de viver por si. é como se eu roubasse todo seu ímpeto, gradativamente.

a porta range mais uma vez. lhe observar ao longe, pelo vidro retangular com cortinas estampadas, basta. pois lhe ferir com minha alma espinhosa seria o cúmulo do meu ego inflado e da estupidez resguardada em tantos anos de um diagnóstico tão complicado. e nunca que você mereceria estar nessas condições adoecendo junto a mim.

saia desse estado de placebo, minghao. a heresia contraída em submissão não é para você, não combina com seus cabelos cor-de-céu e suas atitudes tão dignas. lhe dou feridas hediondas e você continua persistindo em apagar suas estrelas da existência.

despedaço meu coração assim como as peças e solto de vez meu corpo da ponte. que você possa atravessar sozinho, xu minghao.

abandone o placebo ✧ junhaoOnde histórias criam vida. Descubra agora