De novo, durmo no sofá do escritório sem nem mesmo me importar em tirar os sapatos. O cheiro de couro queimado me alerta de que dormi fumando novamente; mais um buraco no sofá velho, dessa vez do tamanho de meu polegar. Percebo que batidas ritmadas na porta foram o motivo de eu ter acordado. A luz do sol que vem da janela me borra a visão.
Coloco o paletó e bato as migalhas de comida da minha camisa antes de olhar pelo olho mágico e ver um homem de chapéu, óculos escuros e um curativo no nariz. Um fodido, exatamente o tipo de cliente que eu preciso.
Antes mesmo de eu terminar o movimento de abrir a porta, ele entra e já vai perguntando se eu sou o detetive, sentando-se no sofá onde eu estava, o qual fica de frente para a minha mesa de trabalho cheia de louça suja, papéis e fotos. O homem larga seu chapéu de lado e arranca seus óculos escuros; um loiro parrudo, vestindo roupas provavelmente feitas sob medida, que seria bem apessoado, se não tivesse claramente sido surrado há poucos dias. O roxo do nariz quebrado fazendo olheiras de guaxinim e a voz anasalada de quem está cheio de trapo do nariz para dentro o denunciam.
O cara quase não espera eu concordar e começa a contar que se apaixonou por uma negra na favela — linda, engraçada e tal — e que ela sumiu. Vai me pagar para eu encontrá-la. Obviamente, ela deve ter tirado a grana que conseguiu desse otário e pegou algum otário mais rico. Excelente.
Regina Lommo é o nome dela. Ou, pelo menos, o nome com o qual ela se apresentou para ele. Ele me entrega duas fotos com a mulher. Os dois em um restaurante à luz de velas; nas mãos, taças bonitas preenchidas por uma bebida escura na foto preto e branco. Vinho, provavelmente. Algum lugar chique na Zona Sul que sirva álcool para clientes especiais. Faz onze anos que a bebida foi proibida em nome da moral e dos bons costumes, e os jornais continuam afirmando que a lei seca foi eficaz em diminuir a criminalidade, embora meus clientes me contem outra história. Na outra fotografia, ambos estão vestidos completamente de branco, abraçados e sorrindo. Pelo fundo da foto, consigo ver parte do mar. Com certeza foi tirada de cima do morro.
Trecho inicial do Conto Rio Noir, publicado em 2020 na Amazon
disponível via Kindle Unlimited
Disponível na versão física pela UICLAP
VOCÊ ESTÁ LENDO
RIO NOIR (trecho inicial)
HorrorUm detetive alcoólatra é contratado para descobrir o paradeiro do que parece ser uma mulher de vida fácil nas favelas do Rio de Janeiro durante a ditadura do Estado Novo.Um thriller detetivesco de horror, descrito com certa violência e com palavras...