Monteiro abriu os olhos e, momentaneamente, se sentiu perdida no tempo e espaço. A cabeça da mulher doía infinitamente, de uma forma indescritível para ela, nesse momento, arrependeu-se de ter bebido metade da garrafa de vinho que havia comprado na noite anterior.
Não deveria beber, eram as orientações do seu psicólogo, no entanto, fazia mais de um ano que ela não seguia as orientações dele, na verdade, nunca as seguiu com plenitude.
Ainda estava ofegante, sentia o peito apertado e os pulmões doíam por falta de ar. Passou a destra sobre os cabelos castanhos, puxando os fios para trás e se sentando na cama enquanto suspirava. Não era novidade para ela já acordar cansada, afinal, há muito tempo não tinha uma noite completa de sono.
Ouviu o som do despertador encher o quarto pequeno em que estava. Ainda meio sem jeito, Laura tateou as cobertas e, pouco depois, encontrou o celular que tocava, loucamente Evidências. Após desligar o alarme, ela se levantou, puxando suas havaianas, as calçando, pegando o celular e caminhando para fora do quarto, chegando à pequena sala.
Passou na frente do pequeno espelho, observando seu reflexo pouco cuidado. Seus cabelos castanhos, longos e ondulados, desciam até metade de suas costas, meio bagunçados e desalinhados. Os fios bonitos escondiam o rosto cansado da ex-policial, que exibia olheiras profundas adornando os olhos de um castanho intenso, semelhante ao preto. A camiseta de alças finas deixava a mostra a grande cicatriz em seu ombro, que provocava ondulações grotescas na pele morena-clara, que estava pálida devido ao tempo em que não saia durante o dia para tomar sol.
Laura levou as mãos aos cabelos e os puxou para trás, pouco contente com o tamanho dos fios, mas sem disposição alguma para cortá-los
Era um apartamento minúsculo, mas não por falta de condições financeiras, na verdade, dinheiro não faltava a ela. No entanto, Laura não conseguia fechar os olhos e relaxar se, da sua cama, não conseguisse ver a porta da sala. Por isso escolheu aquele pequeno apartamento, com cozinha “americana”, um quarto pequeno e um banheiro simples.
Caminhou até o seu fogão e, tranquilamente, abriu o armário que havia acima dele, pegando as coisas para preparar seu café. O dia havia amanhecido há pouco, no entanto, Laura não se surpreendeu ao ouvir o celular tocar, ignorando-o expressamente enquanto colocava a água na panela e acendia o fogo.
Segundos depois, escutou a campainha tocar e, num pequeno intervalo de instantes, batidas frenéticas na porta. De olhos fechados, a mulher amaldiçoou mentalmente a visita indesejada, coando sem pressa o café ao som das batidas que pareciam querer por sua porta abaixo. Quando acabou, caminhou em direção a porta de entrada do pequeno apartamento, abrindo-a a tempo de ver o rapaz de altura mediana e com uma expressão de pura irritação com umas das mãos erguidas.
— Porra, Laura! Custa abrir a porta antes que eu acorde todos os seus vizinhos? — Gustavo entrou no apartamento sem sequer pedir licença, recebendo um olhar de reprovação.
A relação dos dois era um tanto quanto conturbada. Gustavo, insistentemente, mantinha-se próximo a Monteiro mesmo quando esta deixava expressamente explícito que não se interessava nem um pouco por sua companhia.
— Não sei o que está fazendo aqui às sete da manhã — ela respondeu, voltando para a pequena cozinha e despejando o café em sua xícara. — Ou pretende, de novo, me levar para mais um dos seus tediosos passeios matinais?
Claramente, ela não estava nem um pouco animada para isso, sair de casa sem um propósito não fazia seu estilo ou gosto, preferia o conforto de seu lar e, às vezes, um bom filme em algum serviço de Streaming.
— Trouxe algo que eu acho que vai gostar — Gustavo iniciou, pegando uma xícara e colocando café para si. — O psicólogo disse que tem que ser mais ativa e, como você não parece se interessar por nada que não sua carreira falida, te trouxe algo.
O rapaz de cabelos castanhos e encaracolados estendeu uma pasta para a ex-policial, que olhou com desconfiança para o objeto. Gustavo não tinha um conhecimento completo sobre a situação atual de Laura, sequer sabia de fato pelo que ela havia passado, no entanto, era seu trabalho ajudá-la em sua reinserção social após quase um ano de tratamento psicológico e a atividade não estava sendo nada fácil.
— O que é isso? — ela perguntou, pegando a pasta da mão dele e a abrindo, deparando-se com vários inquéritos policiais perfeitamente organizados e aparentemente sem soluções.
‘Um caso?’, pensou, unindo as sobrancelhas e encarando o rapaz à sua frente.
Gustavo era quase quatro anos mais novo que Laura, havia se formado recentemente em psicanálise e, como seu primeiro trabalho após passar num concurso público, foi designado para cuidar de Monteiro até que ela estivesse pronta para seguir sozinha.
— Você sabe o que é isso, é muitas coisas Monteiro, menos burra — ele falou, sentando-se sob um dos banquinhos e encarando-a. — Se não se encaixa em lugar algum, podemos tentar algo que seja parecido com o que você fazia antes, não acha?
Visivelmente mais interessada, Laura caminhou até a pequena sala e se sentou no sofá, abrindo a pasta com certa afobação, retirando os papéis e percorrendo as linhas com os olhos, devorando as palavras avidamente, arrancando um sorriso vitorioso de Gustavo, que sentia que finalmente estava avançando. Uniu as sobrancelhas e, mostrando uma das folhas ao “colega”, Laura apontou um dos parágrafos expositivos:
— Isso é tráfico de órgãos? — perguntou, mostrando um trecho específico.
Na pasta havia diversos boletins de ocorrência que iam de sequestro e desaparecimento, enquanto outros relatavam a descoberta de corpos numa região florestal de Brazópolis. Os corpos tinham sinais de mutilação e, estranhamente, lhes faltava o fígado. Além da estranha falta do fígado, um grande agravante chamou a atenção da ex-policial, a idade das vítimas.
— Tráfico de fígados infantis? — ela indagou novamente, recebendo nada além de um dar de ombros do companheiro.
— Não encontraram nada, os corpos estavam jogados na mata e não havia sinais que incriminasse alguém, sem digitais, sem DNA — Gustavo se ergueu do banquinho, caminhando até ela e se sentando ao lado. — Você era boa no que fazia Laura. — O rapaz tocou o ombro dela e, apertando levemente, continuou. — Pode tentar de novo, já faz mais de um ano, quase dois, na verdade.
Deixando os papéis de lado e bebendo mais um longo gole de café, Laura suspirou. Não se via fazendo outra coisa, não se encaixava em lugar algum. No entanto, não sabia se estava pronta psicologicamente para isso, sequer sabia se conseguiria tocar numa pistola novamente, apesar de ainda ter seu porte e sua arma guardados no fundo de seu guarda-roupas.
— Eu iria com você... Não estará infringindo nenhuma lei, tem formação para agir como... não sei, um tipo de detetive particular eu acho — tentou incentivar.
De fato a achava talentosa, Laura havia feito algo que poucos com sua idade conseguiram, desfazer um sistema complexo de tráfico e, por isso, havia pagado seu preço. Sequer imaginava o que ela havia passado, e mal sabia que tudo o que lhe contaram não passava de uma mentira inventada para acobertar os atos à margem da lei de uma organização governamental pouco conhecida. Mas em algo ele estava certo, Monteiro era especialmente talentosa quanto à investigação e, se assim quisesse, poderia seguir de forma independente no ramo.
— Se der errado, eu vou culpar você — ela falou, juntando os papéis na pasta novamente e se erguendo. — E você dirige.
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Contos investigativos de Monteiro
HorrorExistem inúmeros casos sem explicações nesse mundo, desaparecimentos, mortes misteriosas e aparições inexplicáveis que geram boatos, lendas e histórias passadas de boca a boca. Mas todas essas histórias tem um fundo de verdade, mesmo que pequeno. L...