A primeira vez que li um livro completo, eu tinha seis anos. Havia aprendido a ler nas semanas anteriores, e somente textos pequenos sobre assuntos monótonos como processos de agricultura e assuntos maçantes para uma menina nova. O primeiro livro que li tinha o tamanho de meu braço, e grossura de meu pulso, num assunto nada melhor que os que o precederam: "História da Primeira Geração de Aliança e Seus Planos Táticos de Batalha". Era uma atividade que envolvia mais compreender o que estava escrito do que ler em si. Eu era jovem, mas não mais ingênua, e o devorei, linha por linha, palavra por palavra, como alguém que reconhece o valor de um tesouro precioso que poderia nunca mais ver. Eu estava certa em fazê-lo.
Passei noites acordadas e li com atenção, foco e disciplina que uma criança daquela idade não deveria ter. Não era como havia sido em todas as dezenas de páginas soltas que me eram entregues como tarefa. Foi, talvez, a única vez em que eu segui uma ordem por vontade e com o mais próximo que podia chegar a ser encanto, não como havia sido até ali, com resignação é por obrigação, mas com o desejo ávido genuíno de entender o que estava sendo retratado ali. Levei dois meses para completá-lo e mais um fazendo um resumo sobre o que aprendera. Após os cerca de dois anos em que tinha ali, eu tive afinal uma refeição decente pela primeira vez, como recompensa por ter sido uma boa aluna.
Bobagem, eu enxerguei mais tarde. Era nada mais que outro teste, de muitos que viriam a seguir. Um teste em que atingi a nota máxima, mas que, eles descobririam muito depois, beneficiou-me de uma forma que não os beneficiaria jamais.
Quando Samantha chamou Chia e eu para a biblioteca, há pouco mais de quinze minutos, e deixou que eu lesse e relesse quantas vezes quisesse a tradução que fizera do pedaço de enigma que eu lhe entregara, só pude pensar em como ambas as situações, por diferentes que fossem uma da outra, se assemelhavam no ponto em que realmente importa: eu estava ávida por respostas, focada em consegui-las e lutaria por elas.
E, mesmo sabendo que não é assim, eu me sinto testada.
Que tipo de respostas eu poderia encontrar ali? Quais respostas que os Cae buscam nesse pedaço de papel? O que essas sílabas juntas representam?
Até que ponto este enigma pode afetar meu futuro?
Consigo ler todas as palavras em seu significado literal, ao me inclinar pelo que parece ser a centésima vez sobre a madeira que me sustenta, mesmo que elas sigam não tendo sentido nenhum para mim. As letras colocadas em uma ordem lógica estão em meu idioma, está claro, mas não compreendo o que o texto quer dizer e isso me irrita mais do que eu gostaria de admitir.
Uma dorzinha incômoda batuca em minhas têmporas.
Deixo o papel sobre a mesa, ao lado de sua versão original, sem deixar de passar o olho pelos desenhos que enfeitam este segundo. Mas não contenho uma nova tentativa de entender o que ele quer dizer e o releio, desta vez falando suas palavras com movimentos de meus lábios, sem som:
Sob as cinzas de dez vidas,
Espalhados vão estar
Fragmentos de união,
Pedaços a se juntar.
— Foi muito difícil? Achei que demoraria mais.
Sam nega com a cabeça em minha direção, rodeando minha cadeira.
— Depois que consegui decifrar os contornos e diferenciar o que era desenho para o que representa os versos em si, foi mais rápido.
— O que significa?
É Chia quem pergunta, após ler as frases sobre meu ombro.
— É uma crença do meu povo — replica Sam, andando ao redor da sala, com aparente inquietude. — Uma coisa que, para nós, pode mudar o modo de ver de tudo o que vivemos nos últimos trezentos anos, e tudo o que viveremos a partir de agora. É nossa esperança de ter um futuro.
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Artefatos de Sangue
Paranormal"Eu nunca quis ser parte disso. Nunca quis fazer parte dessa guerra. Nunca quis ter que escolher um lado. Mas, por eles, e por mim, eu finalmente queria tentar". Embarque nessa aventura, afogue-se nessa história enigmática e envolva-se num mundo de...