Capítulo 37 - Parte Única

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Meus pesadelos têm piorado. Na calada da noite, o sonho com a menina volta, tendo um final distinto e mais aterrorizante a cada vez. E o cenário também começou a mudar. Vez após vez surgia outro lugar desconhecido para me assombrar. Não sei o que mais me assusta.

Estou sempre no deserto de xadrez, ouvindo os mesmos versos cantados da garotinha, oscilando em conversas que acabam em um membro ou dois arrancados de meu corpo, mas tem havido mudanças no final, nunca sendo o mesmo. Um relógio que desce rolando um morro negro, cujas pontas afiadas arrancam minha cabeça por eu não conseguir fugir rápido o bastante de seus ponteiros afiados, ou a chuva de água negra que queima minha pele até que não reste nada mais que ossos expostos por eu ser incapaz de encontrar abrigo durante o início da tempestade ácida.

E o lobo. Sempre o lobo.

Ele se tornou minha companhia em meus pesadelos. Sofre ao meu lado noite após noite após noite, ganindo e choramingando e fugindo dos mesmos horrores que eu, tão perto que eu sou capaz de ver seu contorno embaçado, mas distante demais para ser alcançado. Levando em conta meus últimos dias entre o submundo que é a Reserva, tenho que me perguntar se ele, de fato, existe.

Mas minha ansiedade hoje é por outro motivo.

Minha descoberta acerca do mapa que, em suposição, poderá levar os Cae ao próximo pedaço do enigma causou um alvoroço maior do que o esperado. Ao que parece, o interesse de Samuel — o os seus — sobre mim ficou maior, o que significa que passou a existir. Há dias atrás, eu era um empecilho para eles chegarem à Penny; hoje, sou uma curiosidade que pode ajudá-los a completar sua missão de juntar as quatro partes do enigma e guiá-los, com a bambina, à cura preciosa.

Que bobagem.

Meu estômago revira com os poucos minutos que tenho para colocar as roupas em meu quarto e adentrar o Salão do Conselho com Samantha para ficar ante os líderes da Reserva, um deles sendo Samuel, e sanar suas dúvidas a respeito do que eu puder.

— Tire os sapatos, Nori — instrui Sam. — Passaremos pela fonte de água do Norte.

Estou ofegante, fitando os três pares de portas duplas que foram posicionados aqui.

As portas duplas diante de nós formam o conjunto mais impactante dentre as três. Intimidadoras e majestosas, elas certamente foram construídas para representar riqueza, grandiosidade e poder, erguendo-se até o teto com várias partes compondo uma elegante moldura dourada e decoradas com delicados círculos de madrepérola e uma miríade de tons de azul por toda a superfície da madeira.

Largo os tênis num canto, sem baixar a cabeça, sentindo o mármore frio do solo da construção estabilizar as solas de meus pés. Aliso o vestido e passo os dedos na trança, perguntando-me pela primeira vez se estou adequada para entrar num lugar que inspira intenso respeito e reverência.

— Este lugar foi o lar de nossos ancestrais — fala Sam, com as mãos cruzadas na frente do corpo, fitando-me com seriedade. — O lago ocupa mais da metade do salão, e é o centro da construção e o foco de magia de todo o Norte. Quando chegamos a certa idade, temos que passar por ele como prova de nosso respeito pelo passado e o desejo de um futuro como Cae, em frente ao Conselho dos Poderes do Norte. A água simboliza a integridade, a pureza e a sabedoria dos povos, e apenas os dignos podem enfrentar essa passagem. Mas, não se preocupe. Você não fará a cerimônia de apresentação e não terá que mergulhar. Basta pisar e andar.

— O que acontece com que não é digno de passar pelo lago?

Arrependo-me de verbalizar o pensamento ao ver a expressão de Sam.

— Vamos dizer apenas que sempre é melhor pensar que vão passar.

Engulo em seco, vendo as mulheres dos véus abrirem as portas do caminho do meio, sinalizando com uma leve inclinação que deveríamos seguir adiante.

Artefatos de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora