Capítulo 38 - Parte Dois

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dedos raspam nos arbustos cheios de espinhos, tocando sem me ferir na ponta destes. Paro quando chego a uma parte sem folhagens me impedindo de me encostar à parede da mansão. Apoio minhas costas sobre a superfície dura, firme e incômoda, rígida e fria — é o que eu esperaria encontrar dentro de mim, se eu pudesse personificar sentimentos.

O silêncio aqui é pesado e sufocante, mesmo que querido. Estão todos jantando lá em cima, o que me garante uma desejada privacidade...

... Que é quebrada pelo som de cascalho sendo quebrado.

Solto um grunhido, deitando a cabeça para trás, de olhos fechados.

— Não quero discutir agora — digo, esperando que Frida ou Chiara, quem quer que tenha vindo ralhar comigo, vá embora.

— Que bom, porque eu também não.

Volto-me surpresa para Daniel, sem conseguir esconder meu espanto por ser ele a me seguir.

— Desculpe, pensei que fosse Chia ou Frida.

Ele desconsidera minha fala com um dar de ombros.

— Tudo bem.

— Sabe que não precisa ficar aqui só porque Frida achou, sabe-se lá porque, que seria bom te enviar, não é?

— Ah — ele dá de ombros e coça a nuca, roçando os dedos nos cabelos da nuca que se embolam em cachos curtos ali. — Eu não tenho a intenção de decepcionar o mensageiro.

Fito-o por um segundo, se me importar com a resposta nada lisonjeira.

Não há palavras nem menções de conversa. Suspirando de novo, desencosto-me e dou início a uma caminhada rumo ao descampado que usamos para treinar. Sem precisar virar-me para ver se sou seguida, sinto que Daniel me acompanha.

A brisa do Mar abraça nossos sentidos quando saímos dos limites das paredes da mansão. A visão da praia é uma lembrança de meus dias em Aliança, sempre vivendo próxima ao Mar, sempre sentindo o odor ácido do sal de sua imensidão. As ondas ondulam em montes de espuma macia que me lembro de ter uma textura curiosa. Não me recordo, porém, da sensação de nadar, pelos diversos anos distante do afago da água salgada. Milhares e milhares de pontinhos brancos no céu refletem-se na água que está abaixo, num tom mais profundo que o azul profundo que há acima de nossas cabeças.

Coço as palmas das mãos, sentindo as cicatrizes quase invisíveis, franzindo o cenho. Peço para minha expressão não ser transparente como sinto que é.

Estalo a língua, sem saber como evitar que as frases saiam de minha boca.

— Pareci muito dramática lá dentro? Ou muito — nego com a cabeça, sem saber como completar —cruel?

Minha pergunta se perde na noite escura. Não sei a razão de meu questionamento, portanto não o miro para não ter que encontrar a zombaria no azul do olhar de Daniel. Mas, quando o silêncio se estende demais, viro-me para ver sua expressão.

Ele não está olhando para mim.

— Você está com raiva — diz ele, pisando na grama com passos cautelosos, sem parar de fitar o céu. Sinto que sua cautela não se deve ao fato de não olhar para o chão. — Não há nada de errado em ter raiva às vezes.

Rio sem humor, apertando as mãos em punhos.

— Talvez não para a maioria — concordo, franzindo a boca. — É diferente comigo. Eu não fico com raiva. Não mais. Pelo menos, é o que as pessoas costumam pensar.

Forço o caroço pela minha traqueia, contendo o impulso de falar.

— É nossa natureza sentir raiva em certas situações — afirma Daniel, dando-me uma olhada de rabo-de-olho que encontro. Desviamo-nos para fitar o caminho que se ergue à frente. — Não é preciso ser durona o tempo todo, mesmo que seja inteligente. — Contenho um sorriso por seu acréscimo. — Além disso, eu acredito que tenha seus motivos para estar assim. Estou certo?

Artefatos de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora