Engulo a bile.
Dezenas de formas grandes permanecem paradas ao redor, ao Norte. Eles parecem observar em silêncio os mais novos, aqueles que ainda não se acostumaram à transformação, ou quem está passando por ela pela primeira vez. Como num flash de reconhecimento, imagino que recebam em seu meio aquele que vencer o tormento deste estranho rito de passagem, mas somente aguardam os que ainda não foram capazes de enfrentar seu lado mágico.
Ao localizar três ou quatro corpos imóveis, não posso conter o questionamento mudo a respeito de quantos deles morrerão nesta noite.
Recuo um passo, repensando minha decisão de vir até aqui, como tenho feito toda a noite. Parece que saio do fio da espada para a ponta da foice.
Contudo... Uma voz que se sobressai me faz paralisar.
— Samuel, por favor!
Perco o fôlego ao localizar Kash, de bruços, num local não muito longe de onde estou. Há nada mais que um minuto atrás, ele estava totalmente parado. Agora, seu corpo não para de convulsionar. Pelo ângulo de seus ossos, deduzo que suas pernas estão quebradas. Seus berros desesperados perfuram meus tímpanos como os outros não podem.
A gigantesca diferença que há entre o sorriso habitual do jovem e sua careta atual é impossível de ser ignorada.
— Ficará mais fácil se você se submeter — rebate um homem mais velho, observando com pena o jovem. — Samuel só pode esperar sua decisão, menino. Faça e compartilhe sua dor com sua alcateia.
— Ele está com dor! — Esbraveja outra voz. Daniel. — Pare de dar ordens que ele não pode cumprir!
Respiro fundo ao ver o rapaz surgir ao lado de Kash. Seus olhos azuis faíscam quando ele se abaixa ao lado de Kash, murmurando palavras tranquilizantes. Em sua mão, um tecido é desdobrado e colocado sobre os cortes maiores nas costas de Kash. A pose é desnorteadora. Jamais pensei que Daniel seria o tipo de garoto que se importa ao ponto de enfrentar a dor junto com aquele que realmente a sofre. Eu tampouco acreditava que de fato houvesse uma amizade sincera ali, mas repenso ao ver sua preocupação com o outro.
Um trovão ressoa com força, mas ninguém dá atenção à tempestade. De onde estamos, a chuva é quase completamente isolada. Estamos abrigados sob um forte manto de enormes árvores muito altas.
— Eu não aguento mais, Daniel! — Kash grita, seus membros puxando sua pele de uma forma antinatural. Ele puxa a camiseta de Daniel de modo frenético. — Damn, sei que é pedir muito, mas me ajuda! Eu não consigo mais esperar por ele. Por favor, Daniel, por favor!
Sua angústia, de algum modo, parece maior do que a de todos os outros, alcançando-me com tamanha nitidez que me torna quase consciente de sua dor, fazendo com que minha pele arda e pinique como se eu mesma sentisse aquilo que ele sente.
Prendo a respiração ao ver um lobo maior do que os outros se aproximar dos dois garotos. Todos os outros lobos recuam para deixá-lo pagar, e os jovens agitam-se com sua proximidade. O lobo para diante de Daniel, que o encara por um, dois, cinco segundos, antes de voltar-se para Kash, como se soubesse o que fazer, porém não tivesse certeza.
— Daniel!
Coloco as mãos sobre meus ouvidos, como se isso fosse abafar os pedidos de Kash, como se isso fosse apagar seu suplício de minha memória.
Kash geme uma vez mais e deixa que sua cabeça caia no solo, deixando seu choramingo ininterrupto ser abafado pela terra.
— Ajude-o, Daniel — murmuro, sem voz, sem poder conter minhas palavras sem som. — Ajude-o.
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Artefatos de Sangue
Paranormal"Eu nunca quis ser parte disso. Nunca quis fazer parte dessa guerra. Nunca quis ter que escolher um lado. Mas, por eles, e por mim, eu finalmente queria tentar". Embarque nessa aventura, afogue-se nessa história enigmática e envolva-se num mundo de...