Algumas pessoas dizem que é impossível nos apaixonarmos por um pedaço de papel, pelas simples letras desenhadas nele - bem, eu discordo. Durante toda a minha vida escrever foi a minha paixão, por isso decidi que nunca abandonaria aquilo que mais me alegrava, e tornei-me jornalista. Sempre gostei de ouvir as histórias das pessoas e escrevê-las para que assim outros as pudessem ler.
Apesar do meu trabalho nunca abandonei o meu hobbie da escrita, continuei a escrever de tudo - poemas, cartas imaginárias, pequenos textos, etc.
Gostava de me sentar de baixo de uma árvore todos os dias depois do trabalho, era o sítio que mais gostava naquela zona, era um sítio calmo. Aquele jardim era uma ótima fonte de imaginação, a meu ver.
Numa tarde quando me sentei sob a árvore estava lá uma pequena folha de papel, e sei que não devia, mas desdobrei-a para ver o que tinha escrito e lá estavam escritas as palavras mais doces que já li: "Nada é mais bonito que o brilho dos teus olhos, que todos os dias refletem o sol de final da tarde, que se esconde mais rápido entre o horizonte por vergonha de não ser tão lindo como os teus olhos cor de mel".
Quem teria escrito tal coisa? Seriam para quem aquelas palavras?
Olhei em volta na esperança de encontrar alguém que pudesse ter escrito aquilo, mas nada. Então decidi analisar o papel para ver se continha alguma assinatura ou alguma morada, mas não, não tinha nada. Provavelmente alguém o tinha perdido ou, se calhar, tinha o deixado ali propositadamente. Mas quem?
De repente a suave brisa de final da tarde trouxe consigo um doce aroma de morango... O meu favorito! Aproximei devagar o papel da cara e cheirei-o. Era dali que vinha o cheiro.
Ninguém pareceu ter notado que aquele papel estava ali ou que eu o tinha encontrado. Por isso, coloquei o papel dentro da minha mochila e retirei de dentro o livro que comecei a ler uma semana antes: "Escândalo em Veneza". Eu estava a amar aquele romance, era mágico.
Passado uma hora decidi que estava na altura de ir para casa e assim o fiz. Fui dormir mais tarde naquela noite e as palavras no bilhetinho ainda circulavam na minha mente. Perguntava-me se no dia seguinte estaria lá outro ou, se por algum "milagre", estaria lá o autor daquelas palavras...
No dia a seguir no trabalho tudo correu normalmente, mas eu sabia que não estava tão concentrada como nos outros dias. Eu não conseguia parar de pensar na pessoa que poderia estar por de trás daquelas letras docemente desenhadas.
O tempo pareceu passar mais devagar naquele dia e as histórias não pareciam tão interessantes como de costume, mas esforcei-me ao máximo para que o meu trabalho corresse na perfeição.
Naquele dia não consegui sair no horário normal por conta da agitação no edifício. Já o sol se tinha posto quando saí, no entanto, não conseguiria ir para casa relaxada se não fosse primeiro à árvore para ver se tinha lá outro bilhete. Passei no parque antes de ir para casa e, como ansiava, debaixo da árvore estava outra folha que, nessa vez, era maior. Levei-a à cara e cheirei-a. Morango...
Ia desdobrar o papel e ver que outras doces palavras estariam lá daquela vez, no entanto algo me estava a incomodar naquela noite. Sentia que alguém me estava a observar, então decidi não arriscar. Coloquei o misterioso bilhete na mochila, agarrei-a fortemente e fui o mais depressa possível para casa. O caminho até casa foi bastante estranho e perturbador, sentia sempre que estava alguém a seguir-me, mas não estava lá ninguém.
Assim que fechei a porta de casa, dirigi-me à cozinha e preparei algo rápido para jantar. Estava esfomeada! Quando acabei de preparar a comida, servi-me e guardei o resto no frigorífico para o dia seguinte. Finalmente, sentada à mesa, pude abrir a folha que, para meu espanto, continha daquela vez um lindo poema:
"A primeira tentativa parece ter sido certeira
e o teu olhar brilhou de imediato,
dando início ao meu próximo ato.Com as minhas mãos artísticas
este próximo poema te redijo
realçando o que em ti admiro:
A tua voz é suave como um beijo;
A curva dos teus olhos abraça o meu coração,
fazendo de mim o teu leal cordeiro
escravo da tua beleza e admiração.Todos os dias te vejo olhar
para o que parece ser o teu lar
e todas as vezes me aflijo
com medo de não te agradar,
pois não sou da realeza
e muito menos vivo em Veneza.Mas uma coisa te garanto:
até a minha imaginação se esgotar
com muitos outros bilhetes terás de lidar.
E enquanto os admiras,
traço sinais vermelhos sobre os teus olhos ausentes,
pensando em como parecemos dois típicos adolescentes:
comigo enviando-te lamechices certeiras."Meu Deus! Não sei em que verso me comecei a sentir assim, mas como era possível? Eu tinha me apaixonado por palavras num papel...
Mesmo assim algo ainda me incomodava: Veneza seria uma referência ao livro que andava a ler? Porque se fosse a pessoas andava a observar-me à pelo menos uma semana.
Como era possível que palavras e elogios me fizessem sentir tão bem e tão assustada ao mesmo tempo?
Estava disposta a descobrir quem era o autor por de trás daqueles versos, por isso dirigi-me ao meu quarto, peguei numa caneta e num papel e escrevi: "Quem és tu?" Guardei a minha mensagem na mochila e fui dormir. Eu ia descobrir quem era ele!
No dia seguinte trabalhei arduamente, queria conseguir sair mais cedo para deixar o recado na árvore e evitar ter de estra lá outra vez ao final do dia no escuro. Assim o fiz: saí mais cedo, fui para a árvore, continuei a ler o meu livro e umas horas mais tarde deixei lá o papel e segui o meu caminho.
Tinham se passado algumas semanas e eu continuava sem resposta, quem quer que fosse parecia ter sumido. Não estava lá o meu papel no outro dia, mas também não havia nenhum outro bilhete.
Até que desisti. Não esperei por uma resposta ou por outro bilhete, nem me preocupei em colocar lá outra pergunta. Tinha voltado à minha rotina normal, ou pelo menos assim pensava...
Certo dia, enquanto saía do edifício apercebi-me que tinha me esquecido do meu livro na minha secretária, por isso dei meia-volta e voltei para dentro. Quando peguei no livro caiu lá de dentro uma pequena folha com cheiro de morango. Era dele! Abri-a e lá dentro dizia: "Que tal nos encontrarmos no nosso sítio hoje?". "Hoje"?! Quer dizer, porque não? Eu ia para lá mesmo.
Fui direta para a árvore, sentei-me e comecei a pensar: Finalmente vou conhecê-lo! Quem será que é? Será que o conheço? Porque passou tanto tempo sem me dizer nada?
Estava perdida nos meus pensamentos quando senti uma aragem que trouxe consigo aquele aroma maravilhoso de morango. Olhei para cima e reparei que o sol já se começava a pôr e que a última senhora que ainda se encontrava comigo no parque já começava a se ir embora, no entanto não havia sinal dele. Será que afinal ele não viria?
Levantei-me quando o sol já tinha desaparecido e quando o fiz reparei noutro papel. Era dali que vinha o cheiro. Como não o tinha visto? Cheirei-o para confirmar se era dele e de seguida abri-o: "Estás linda, minha querida Aurora" Aurora? Tipo, a bela adormecida? Olhei com mais atenção para o papel e em letras muito pequenas dizia: "Dorme bem".
Dorme bem? Como assim?
De repente o cheiro a morango pareceu ter se intensificado e com isso comecei a sentir-me tonta, não me lembro de muito depois disso. Mas lembro-me claramente da cara dele, da cara do homem que me fez apaixonar por palavras num papel, do homem que apesar de todas aquelas palavras sempre mentiu e que o nome ainda desconheço.
Fazem 53 dias desde aquela noite no parque e até agora estou presa no que penso ser a cave do meu raptor.
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53º dia
Romance"Algumas pessoas dizem que é impossível nos apaixonarmos por um pedaço de papel, pelas simples letras desenhadas nele - bem, eu discordo." Foram as simples declarações de um admirador secreto que fizeram com que uma jovem jornalista se apaixonasse...