Capítulo 2

473 50 6
                                    

Rio de Janeiro, 2087.

1 ano depois.

Desde a tragédia acometida a Caleb, tem se passado muito tempo. Mesmo assim, tenho tido pesadelos todos os trágicos dias que sucederam ao dia de iniciação nos Protetores.


A cabeça de Ruan arremessada em nossos pés. O corpo do irmão mais velho, repartido ao meio, caiu na frente da incapacidade que demonstrei.

Todos os dias.

Sonho a morte deles como se vivesse num looping. Inclusive, não é difícil sonhar aqui. Vinte inocentes foram executados pelos atos dos Slaafs e dois Protetores mortos. A sociedade carioca queria um culpado de imediato, e por não terem conquistado a cabeça de Ivan, cá estou eu, presa nesta cela pútrida que fede a morte.

Presa há um ano.

Alguns policiais tentaram adentrar a cela para causarem modelos de justiças nada convencionais as leis dos livros, mas muito conceituadas nas ruas. Os que tentaram me bater morreram. Aqueles que pensaram em me abusar morreram também. Os carcereiros decidiram então não recolher os corpos, como o único método de punição que não causaria mais mortes.

Há um ano convivo com corpos mortos.

Quando a luz bate na vidraça que há a frente da cela consigo ver o estrago que fiz. Há policiais pendurados no teto, suspensos pelas linhas que um preso deveria usar para estender a roupa. Os corpos destes estão rasgados pela metade, enquanto o intestino grosso enrola por toda a linha.

"Como os vermes chegaram ali?"

As moscas varejeiras que se alimentavam da podridão também me beijavam no rosto e dormiam sob meus cabelos. Os ratos, mais tímidos, consumiam as pernas decepadas que estavam arremessadas nas quinas da grade. Nos dias em que não havia refeição, pois tinha de aguentar a bondade dos policiais para me alimentarem, alguns dos ratos engordados me serviam de lanche. No começo vomitava tudo. Atualmente, é apetitoso.

Gostava da aparição do sol. Ele me deixava conectada à merda que se tornou os dias. Trinta anos de prisão que nenhum preso comum sofreria, mas a aspirante a Protetora teria de fazê-lo pelos atos de um homem. Ivan.

Na verdade, temia a noite. Caleb ia visitar a cela todas as noites. Destruído, em carne. Com as asas queimadas, e órgãos que saltavam no tronco exposto. Ele me perguntava:

— Por que você me deixou morrer?

Nunca soube responder.

Um carcereiro fitou a cela. Esquisito, pois mal via as mãos deles quando entregavam os pratos. Não passavam na frente há meses. Ele ficou prostrado como uma vaca. Olhos mortos. Ruminava um chiclete que fazia questão de mascar de boca aberta. Tentava aparentar superioridade, mas só fazia parecer uma criança mal educada de braços cruzados.

— É essa aqui. Tem certeza? — Olhou para a esquerda. Caminho de onde veio. Na espera da chegada em alguém.

— Por acaso lhe dei autorização para contestar minhas afirmações, soldado? — Aquele homem, sim, tinha a imponência apenas na presença.

Não estava fardado. A camisa social que utilizava caiu-lhe bem no corpo franzino. E o corte de cabelo loiro, raspado nas laterais e lambido para trás remetia a algum personagem rebelde de jogos de luta, ou Sun-Ken Rock. Literatura japonesa que tive na infância. O coldre tinha uma pistola, e só.

"Eles não trouxeram nenhum outro policial há meses, vão me executar?"

O carcereiro foi embora, mas por último encarou o homem com desdém. O desconhecido olhou para mim. Tinha uma visão forte, mesmo que nada agressiva.

Deuses de Sangue [VENCEDOR WATTYS 2022]Onde histórias criam vida. Descubra agora