Capítulo 93

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Onde estava? O pós-morte? Era tudo por demais iluminado. Ou minha vista não havia se acostumado ao ambiente? Comecei a piscar, como se aprendesse a ver pela primeira vez. Lento, a visão começou a se adaptar. Na minha frente, estava um menino negro de cabelo black maior que a própria cabeça. Ele sorria para mim como se fôssemos íntimos.

— Quem é você? Deus? — minha pergunta o fez ficar mais alegre.

— Você é inocente mesmo! hahahahahahha! — Era a risada doce de uma criança leve. — Slaafs, pactos celestiais. Não são todos criaturas acima do teu conhecimento? Como não chamá-los de deuses também? Deuses de sangue. — afunilou a visão.

— T-Tronos? É você a materialização dele?

— Pfff! — conteve as gargalhadas. — Sou um pouco maior que ele. Eu sou aquilo que você perseguiu!

Não podia ser. Meu corpo tremeu, como se um medo profundo envolvesse todos os membros. Não havia me tornado uma alma? Então como? Como eu podia sentir medo se não mais existia? Ele quebrou a regra.

— V-você é o...

— I-m-p-e-r-a-d-o-r. — soletrou.

— Eu imaginei que estivesse selado.

— Ainda estou. Só que vocês me acordaram assim que uniram meus olhos. — explicou, ele virou o tronco para frente, onde havia uma tevê. Estávamos em plano celeste, um paraíso cristão, mas as únicas pessoas presentes eram eu e ele, e essa maldita televisão. Dela o Imperador assistia a invasão ao Universo Slaaf de Ose. — Foi uma luta linda...

Me aproximei dele. — Está aqui para nós assistirmos o Barão tomar sua força? — Fiquei um pouco envergonhado assim que falei.

— Ele não vai conseguir meu poder. — O Imperador olhou para mim. — Eu escolhi você para ser o novo Imperador.

— O que!?

— Por que você começou a usar a magia? — me perguntou.

— Para proteger os outros, e...

— PARA DE MENTIR PARA MIM PORRA! — A voz dele se unificou com outra mais grossa e demoníaca no momento do grito. Havia ficado irritado de fato. Mas se acalmou e voltou a olhar a tevê. — Não estamos mais num palco. Pare de ser o homem falso que você foi por anos. Era a coisa que Tronos mais detestava em você, sei disso pois falei com ele.

— ... — Não conseguia me recompor para falar.

— Se não for capaz de reivindicar os próprios pensamentos, sem se envergonhar deles, eu não posso te ajudar.

Fiquei ali, parado. Pensava na tristeza que tive de falar a mesma frase que falei centena de vezes. Por quanto tempo eu mentia? Menti aos meus irmãos, companheiros de equipe. Até a minha mãe. Disfarcei meus planos até hoje. O único que tinha um pequeno vislumbre da realidade era Lian. Por que mentir morto? Talvez... Talvez eu não tenha mentido para os outros. Eu queria acreditar no que falava. Queria que minhas vontades fossem aquilo que explicitava da boca. Era tudo falso. Cada sorriso trazia comigo um peso. Uma tristeza. Uma dor.

Eu era falso.

Um anjo caído. Traiçoeiro e cheio de culpas. Pecados. Mágoas guardadas.

— Eu queria seguir a carreira da música. Como minha mãe fez. Mas conforme ela foi ficando doente, me entreguei ao militarismo para conseguir suprir as contas de casa. Eu nem sabia que era mago na época. — Olhei para a televisão. — Quem descobriu foi Barão. Ele me ajudou a lidar com meu grimório e o pacto. Na época minha mãe estava muito doente, então ele tentou de todos os modos me ajudar financeiramente. Era impossível. O dinheiro para o tratamento dela extrapolou o orçamento dele. Foi naquela época que minha mãe revelou que eu era filho do Protetor Grozny. Roberto, o Invencível.

— ...

— Ele sim, devia conseguir o dinheiro para o tratamento da mamãe. — refleti. — Mas quando fui visitá-lo pela primeira vez. Bati de cara com Aristóteles, e parecia que aquele homem já sabia das minhas intenções.

— O tempo que perdi tentando entrar no prédio dos Protetores, foram os dias finais da vida de minha mãe. Quando ela morreu, eu senti ódio. Um ódio que havia negado. A vontade de destruir essa cidade, e qualquer outro mago que existia nela. A corrupção dos homens. Seus abortos paternais. A falta de carinho com o próximo. Eu queria destruir tudo.

— Isso.

— A sociedade está esganada de pessoas que olham para o próprio umbigo e que valorizam o dinheiro e as propriedades acima da vida alheia. — Minhas mãos cobriram meu rosto enraivecido de um demônio. — Eu só queria proteger a minha mãe...

— E você veio até mim para concretizar seu plano. — me encarou.

— Com o teu poder eu seria capaz de destruir tudo.

O Imperador olhou para um canto vazio. Nele começou a revisitar o passado, eu acredito. Sorriu de relance, como se tivesse vislumbrado uma boa memória. Ou pior, como se no fim do meu desabafo, tivesse me compreendido.

— Slaafs e magos sempre brigaram. — Me contou. — Isso não significa que todos os Slaafs eram ruins, e nem que todos os magos fossem bons. Eu aprendi isso cedo por causa da minha mãe também.

— A sua história, nas escrituras, não menciona nenhuma mãe. — Relutei. Desconfiava.

— Na antiga guerra existiam magos que estavam ao nosso lado. Eles queriam pôr fim à guerra, através de um símbolo que trouxesse paz. Dentre os magos estava minha mãe, a única discípula de Ose. — Ele sorriu a mim. — Eu fui gerado no ventre dela. Pois para Ose, um Slaaf que se assemelhasse ao homem, poderia convencê–los melhor.

— Pelo modo que me conta, não funcionou.

— Não, hahahahaha! — Limpou a lágrima de riso que saia do olho. — Os magos a queimaram viva. Como uma traidora. — Olhou para a tevê. — Existe algo mais cruel do que a morte de uma mãe? Magda Helena Grozny.

— O que!? — Tomei um choque. — A tua mãe era uma descendente de Grozny!?

— Eu não fui o primogênito. Ela tinha outros filhos. Ose os fez aprender a arte dos pactos. — O Imperador levantou. Caminhou para próximo, onde ficamos de frente um para o outro. — A sua dor eu entendo. Seus objetivos. Medos. Anseios. Eu entendo tudo.

— Então para que quis ter essa conversa?

— Para que mude de opinião. — Apontou para a tevê. — Eu não quero dar meus poderes a um sádico. Mas se você não mudar de ideia, não terei escolha.

— Mudar de opinião?

— Um mundo para que nenhum filho tenha de ver a mãe morrer sem ser por causas naturais. — Abriu os braços. — ONDE MAGOS E SLAAFS POSSAM COEXISTIR! UM MUNDO ONDE NÓS DECIDIMOS SE EXISTIRÁ GUERRA OU NÃO HELIEL! ONDE O OURO DOS HOMENS NÃO SEJA SUPERIOR A UM ESTÔMAGO FARTO DE UM INDEFESO! — O Imperador parou, e respirou fundo. — Um mundo justo, para aqueles que já sofreram demais nas mãos dos senhores e tiranos.

— Um mundo justo... — Eu refleti. — Slaafs, e humanos?

— Existem magos e Slaafs ruins. — Se jogou nas nuvens. — Eles morreram, independente do lado que estejam. O que me diz?

Perdurou o silêncio. Não tive coragem para responder. Mudar uma ideia de vida, e transformá-la na criação de um novo mundo.

— Decida, Heliel. A paz do seu mundo está em suas mãos.

Deuses de Sangue [VENCEDOR WATTYS 2022]Onde histórias criam vida. Descubra agora