Capítulo 26

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     - Você é corajosa.

     - Não, sou uma covarde.

     - É a pessoa mais corajosa que conheço.

     - Tenho dez vezes a sua idade, criança, conheço muito mais pessoas do que você e estou dizendo que sou uma grande covarde. Estou morrendo de medo de um baile!

     Gerda sopra um cacho ruivo para tirá-lo do rosto e me olha daquele jeito mandão, como se ela é que fosse a "tia" aqui - e, bem, a julgar por sua aparência, fisicamente ela parece mesmo ser mais velha que eu.

     No auge de seus vinte anos, minha sobrinha postiça, protegida e melhor amiga Gerda é a vidente mais poderosa de todos os reinos, o que não significa exatamente que ela não seja impulsiva e um pouco atrapalhada. Às vezes ela toma decisões questionáveis também, como abdicar do posto de futura anciã do Clã Unido dos Videntes para ocupar um lugar em minha Corte como minha vidente oficial.

     Tudo aconteceu rápido demais.

     Depois que descubro que alguns omenianos de regiões mais afastadas sobreviveram, não posso ignorar esse fato e deixo meu palácio de gelo nas montanhas. É difícil. Nada em minha vida me preparou para o momento em que volto a pisar em minha cidade natal e sinto o cheiro de minha terra. Muito do gelo que cobria os campos, florestas e construções se foi, mas Omem ainda está sob um rigoroso inverno sem fim. E, embora eu deseje mais do que qualquer coisa descongelar tudo ao meu redor, tomo uma decisão mais prudente: decido esconder a existência dos meus poderes. Não uso magia para absolutamente nada. Mantenho minhas mãos protegidas dentro de luvas e evito ambientes muito cheios e aparições públicas. A única coisa estranha sobre mim é a minha imagem.

     Quando atravessei os portões da cidade real acompanhada de Gerda, Xandar, Yui e outros videntes, foi impossível não chamar a atenção. Minha aparência trouxe vários questionamentos, mas, aos poucos, rumores começaram a se espalhar a meu respeito e eu fui chamada de "a descendente perdida da grande rainha de Omem". Os antigos retratos no palácio não mentiam: ficou claro para os regentes e nobres que estavam no poder que eu era, com exceção da cor dos cabelos, exatamente igual à antiga rainha Vytoria. É claro que eles jamais imaginariam que eu, na verdade, sou a própria Vytoria, conservada pela imortalidade pela qual troquei minha alma. Omem continua um reino sem magia, então algo assim está fora de cogitação para o pensamento popular do povo.

     Cessando as antes inacabáveis e sangrentas disputas pelo trono, sou nomeada Vytoria II, herdeira legítima do trono de Omem, e colocada no posto de governo que há cento e setenta anos já era meu. Ouço histórias sobre a onda de frio que congelou praticamente todo o reino durante décadas e como os omenianos precisaram perseverar para ocupar o território deixado por seus antepassados e criar novas maneiras de sobreviver num clima tão gelado e hostil.

     Fingir que não sei de nada é doloroso. Cada vez que passo pelos corredores ou atravesso as portas de qualquer sala do palácio restaurado, meu coração chora. Eu vejo fantasmas do meu passado espreitando, acompanhando cada gesto meu, e me pergunto se essa segunda chance que ganhei será suficiente para reparar vários erros do passado.

     Porque é isso que estou recebendo: uma segunda chance.

     Hoje estou mais madura, mais ponderada e mais humilde. Hoje sei que não posso carregar o fardo de governar uma nação sozinha e que minhas decisões têm um peso muito grande. Em meu coração, ainda sou aquela garota ambiciosa e sedenta pela glória do trono, mas também sou algo mais. Sou uma garota que quer encontrar propósito no que faz. Alguém que quer fazer o bem, ainda que tenha pedido por poderes perversos para isso. Alguém que, depois de tudo que passou, trocaria toda a glória e reconhecimento por coisas que realmente importam: amizade, integridade e... amor.

Dever e Fidelidade #2Onde histórias criam vida. Descubra agora