O bilhete

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    Ele olhou para o quarto com uma certa tristeza adiantada, se perguntando se não deveria tirar algumas fotos daquela casa antes de ir embora. Não voltaria a morar ali, e, embora a maior parte dos dias que havia passado naquele lugar tenham sido difíceis, agora se perguntava se não sentiria falta daquele velho espaço familiar, onde conhecia todos os cantos. Não tinha sido para ele um lar, mas o havia abrigado da melhor forma possível, considerando as circunstâncias. Suspirou fundo. Sentou na cama.
    O que estava sentindo naquele momento? Agora que seus pais haviam se mudado para longe, era a primeira vez que se encontrava tão sozinho. No começo, sentiu um enorme alívio, depois uma indiferença. Na verdade, adorava cuidar de si mesmo, e frequentemente se lembrava, com um sorriso, de quando sua mãe certa vez lhe disse como sentiria falta deles. Mas era um sorriso incompleto, meio triste. Por um lado, se sentia vitorioso, por outro, derrotado. Havia lutado muito para sair debaixo da sombra de seus pais, de se curar de todas as feridas deixadas por eles. Mas lá no fundo sabia que gostaria de ter tentado mais, de alguma forma, criar um vínculo com eles. Naquele momento, a distância emocional era grande demais para ser vencida.
    Não era a única distância dolorosa; ao organizar suas coisas para a mudança, havia encontrado um bilhete de sua ex-namorada na embalagem de um presente que ela havia lhe dado na melhor época de seu namoro. Ele ficou tão feliz com o presente que o bilhete havia passado despercebido, e de alguma forma sobreviveu intacto até cair no colo dele um ano depois. Olhou o papel por bastante tempo, calculando o risco. Deveria?
    Esfregou delicadamente o papel, sentindo sua textura, o olhar perdido no próprio reflexo, o quarto inteiro impaciente. Decidiu ganhar tempo, deixando-o de lado, guardado na caixa onde deixava as outras lembranças dela. E em poucos segundos estava distraído com uma música (ela adoraria essa) e terminando de juntar as coisas velhas para a pilha de lixo (com cuidado para não deixar nada passar despercebido).
    Antes que pudesse tomar uma decisão (já havia tomado), a música foi interrompida por uma ligação. Sorriu, o coração leve: era sua filha.
    Quando o relacionamento com sua ex-namorada acabou, ele estava em uma depressão profunda, tendo uma crise de ansiedade todos os dias. O término foi um choque muito grande, e ele se viu diante de um penhasco emocional. Pensou coisas horríveis nas noites em que não conseguia dormir, e depois chorava arrependido por sentir essas coisas. Mas apesar de querer desistir de tudo, não desistiu. Foi para a terapia, mesmo nos dias em que acordava frustrado, aquela voz azeda e amarga do fundo da alma lhe dizendo que não adiantaria nada "continuar jogando dinheiro fora". Nove meses depois, havia abraçado forte a psicóloga quando se despediram. A terapia não traria de volta o relacionamento perdido, nem mudaria a infância que teve com sua família disfuncional, mas o havia trazido a oportunidade de voltar a ser o pai que sua filha tanto ama.
    Foi a pandemia que os afastou por um tempo, e, por conta da depressão, ele sentia uma enorme vergonha de se reaproximar dela. "Eu vejo minha filha uma vez a cada três meses", havia mentido para sua então namorada. A verdade é que chegou a passar quase um ano sem a ver e, pior, havia deixado de ligar pra ela. Tinha medo da mãe dela, que havia tentado destruir sua vida de todas as formas possíveis durante a separação, e tinha medo de... de que talvez não fosse um pai tão bom quanto se lembrava ser nos primeiros anos de vida de sua pequena. Quase dois anos sem se ver - como ela reagiria? Talvez nem sequer se lembrasse dele mais, e, no estado em que estava, isso não seria o melhor para ela, o melhor para todos?
    Mas por mais que quisesse continuar no fundo do poço, a terapia simplesmente não o deixava. E por mais exaustivo que fosse, continuava a ler todos os dias. Ler sobre pais, sobre amor, sobre relacionamentos.
    E quando ela veio passar férias com ele e o abraçou (com tanta força!), e começou a mostrar todos os brinquedos que trouxe (eram todos novos), e pediu para ele carregá-la em seus ombros (o peso não lhe incomodou nadinha, e quase não a devolveu para o chão!) e quando pediu que lhe contasse estórias para dormir (sempre inventava alguma estória onde os dois eram protagonistas), ele soube que sim, era mesmo um bom pai. E agora ele não tinha mais medo de ligar para ela todos os dias.
    -Pai, qual é mesmo o nome do Foxy? - Ela escondeu o rosto atrás da raposa de pelúcia que ele havia lhe dado de presente.
    -Ué, você não a chamou de Foxy? Quando ela estava com o papai, se chamava Cori, mas eu tenho certeza de que ela gostou do nome que você deu pra ela também.
    Ele sorriu, lembrando do dia em que apareceu na terapia com a raposa, um homem barbudo de 28 anos abraçando o bichinho de pelúcia. Por algum motivo, estava tão preso à infância que nunca havia se permitido realizar nenhuma das vontades e caprichos de sua criança interior. Iria completar 3 décadas de vida sem nunca se dar um brinquedo. Se perguntou quantas pessoas vivem assim, sem perceberem que não estão mais presas àquelas situações do passado. Raramente havia ganhado presentes, e nunca eram os brinquedos que queria. Mas agora era um adulto, e iria se amar da mesma forma como amava sua filha. Teria quantos bichinhos de pelúcia quisesse, e se daria quantos presentes quanto fosse possível... (Falando em presentes...)
    Ele pegou o bilhete mais uma vez depois que a ligação terminou. As lembranças vieram como um caminhão em cima de um trem (me perdoe a imagem sem pé nem cabeça, mas como autor eu me reservo o direito de ser dramático sem pudor, e de qualquer forma já estamos perto do final então quero dar uma encorpada na sopa que é esse texto e... onde estávamos mesmo? Ah sim, estamos indo para o parágrafo que dá um pouco de contexto para o relacionamento desses dois bobos aí, para você ter algum interesse no término deles. Mas agora me enrolei demais nesse, então já vou começar o próximo e ignorar que deixei a sentença ali no começo desse inacabada. Eu posso fazer isso fácil, porque basta fechar isso aqui ) e por um ponto final aqui .
    (Agora foco no drama!)
    Ele tentou por toda sua vida ser diferente do pai, mas acabou sendo uma cópia dele quando a conheceu (estou falando aqui, claro, da ex-namorada. É claro que essa estória toda teria ficado mais fácil de ler, e quem sabe até mais elegante, se tivesse dado nome aos personagens. Não dei, nem vou me justificar! Adiante vamos!) Ela foi a primeira pessoa a amá-lo com a intensidade de uma estrela, e (coitada), não tinha como saber como os traumas dele iriam reagir a tanto amor. Ele não sabia amar (e posso dar muitos detalhes aqui, com vários exemplos dramáticos, mas basta resumir tudo dizendo que ele sofreu várias formas de abuso que nenhuma criança - ou ser humano - deveriam sofrer) e isso foi, aos poucos, a machucando. Muito.
Demorou para ele aprender a amar. Foi somente depois de empurrar para fora de sua vida uma pessoa que lhe quis tanto e tão bem, que ele tentou tão desesperadamente amar, que ele conseguiu. Aos poucos.
Foi preciso muita coragem. No começo os pensamentos ruins e a depressão tentaram sufocá-lo. Então ele se isolou do mundo e prometeu só voltar para ele quando tivesse aprendido todas as suas lições. Longe de todo mundo que conhecia, se obrigou a encarar tudo que era.
E agora, iria encarar aquela letra delicada, caprichada, escrita com tanto carinho.
Uma lembrança de sua promessa.

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⏰ Última atualização: Aug 19, 2022 ⏰

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