Seita No Deserto

Amaral

“Entrará no Reino dos Céus, mas só aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.” No entanto, a respeito desse povo? O que há para eles no pós vida? Realmente existe algo que aguarda a nossa chegada e acolherá a todos? Para mim isso é algo um pouco injusto, sei que a carne é fraca e o Diabo é esperto, as suas artimanhas são criadas justamente para isso, corromper a todos e o senhor ser esquecido.
   Tempos passados eu não pensaria desse jeito, a maneira que esse povo mexe com a nossa mente é algo extraordinário. Recordo que os acontecimentos começaram há pouco mais de dois meses, mas eram amenos, supostamente pessoas desaparecidas na mata ou no “deserto” escaldante. E assim fomos ficando relaxados, ignorando o fato de que alguém estava desaparecido, ou até mesmo, morto. Semanas após o primeiro caso de desaparecido, um corpo foi encontrado, o estado de decomposição mostrava ter sido uma morte recente, mais recente que o primeiro desaparecido. Então começamos a abrir os olhos. 
   Antes do primeiro corpo aparecer, uma nuvem negra era visível no horizonte, ela permanecia sempre parada, nunca se aproximava da cidade, como se aguardasse algo, ou alguém. Após a aparição do corpo, Marina, uma jovem de pouco mais de mais ou menos 22 anos, teve o seu pescoço cortado e o coração arrancado brutalmente, mas o que me chamou a atenção foi a nuvem negra se aproximar lentamente da cidade, eu presenciei tudo. Marina foi encontrada na mata próxima à igreja, a balbúrdia fez com que eu acompanhasse todos na proximidade, chegando no local, a face do defunto estava horrorizada, como se estivesse congelado no tempo. Segundos após olhar fixamente para o corpo, olhei para o céu, a nuvem negra cobria a todos e uma chuva intensa havia começado. É isso que eu recordo desse dia, do início.
   A igreja era um local movimento, servia para acolher a todos na casa de Deus. Assim como todos, eu possuía uma utopia: paz para todos e Deus reconhecido como realmente deveria ser. Sei que é algo absurdo, também acredito na laicidade e que todos devem ter a liberdade de crença, mas o tipo de profanidade que apareceu nos arredores me fez duvidar disso tudo. Desde o princípio existe o bem e o mal, Deus e o Diabo. - Sim, devemos acreditar que ele é real, assim como Deus é. - Sempre soube que existiam grupos religiosos adoradores do Diabo, mas nunca imaginaria que algum deles estariam nessa cidade, eu conhecia todos, agora os vejo como completos estranhos. A laicidade é algo que eu respeitava, o meu pensamento passou a mudar após os casos de sacrifícios, ninguém deve dar a sua vida para que algo maior seja alimentado pelo desejo de poder.
   Está escrito na história casos de possessão demoníaca, é o meu dever admitir a sua existência e tratar como algo natural. A manifestação desses fenômenos, com o passar dos anos, foi–se diminuindo. Conheço um amigo especialista no assunto, ele sempre me falou que se você tem no que acreditar, nem que seja um graveto no chão, o simples pensamento e sensação de que ele te protegerá, realmente te manterá seguro de todo o mal. No entanto, a fé tem as suas fragilidades, deve-se levar em conta o quão forte é o ser das trevas e que é o seu comandante. Uma simples brecha permite que o invasor possa te manipular, duvidar da sua fé e assim, tomar o controle. 

-Eu realmente não sei o que aconteceu nessa cidade, éramos todos pessoas de bem, mas depois desses acontecimentos estranhos, todos nós ficamos diferentes, alterados e nervosos. - Falei. 

  -Então quer dizer que o senhor não tem nada a ver com o surgimento dessa seita misteriosa? - Perguntou a detetive Maria. - Por favor, tenho que saber tudo sobre o senhor ou algo de diferente que ocorreu antes dos acontecimentos. Você é padre da única igreja dessa cidade, não percebeu nenhum comportamento diferente? Sei que muitas pessoas frequentam o local.

  -Minha senhora, nunca algo tão profano iria entrar na minha igreja, Deus está nos protegendo de todo o mal. - Falei impaciente. - A respeito do movimento, desde os primeiros acontecimentos a população ficou em choque, poucos saem de suas casas.

   Sirvo para a detetive um chá de camomila, gostaria de oferecer outra coisa mais gelada, em circunstâncias diferentes eu estaria servindo uma limonada, mas o frio é tão profundo e penetrante, que precisamos nos aquecer por dentro e por fora. A igreja sempre foi levemente fria devido a sua construção antiga, as rochas e dutos de ventilação projetados no local mostram como a humanidade é engenhosa. No entanto, hoje ela é congelante, como uma fortificação medieval em um inverno rigoroso que todos necessitam estar agasalhados, caso contrário, morreriam de frio.