Naquela noite de verão eu entreguei meu coração a um desconhecido. Não me pergunte o motivo de ter abaixado a guarda tão cedo, mas não existia mais nada para eu me apegar. A solidão me consumia no apartamento minúsculo que eu havia alugado e a faculdade parecia cada vez mais desconectada dos propósitos que tracei para a minha vida. Seria meu sonho passar a vida escolhendo revestimentos caros enquanto outras pessoas clamam pelo mínimo nas portas dos supermercados? Isso coloca o meu propósito em cheque, mas o urbanismo me deu a chance de tornar a minha profissão uma inspiração coletiva. Só existia o urbanismo me segurando ali e o dinheiro que meus pais investiram na minha formação. Não existia muita coisa para se apegar e, por esse motivo, foi tentador ter a oportunidade de existir alguém para chamar de meu.
O meu não foi colocado no sentido de posse, mas no sentido de construir alguma coisa juntos. Não faço ideia do quero construir, por isso quero alguém para decidir junto, para traçar planos juntos e confiar mutuamente. Nunca tive muitos confidentes na minha vida. Para falar a verdade, apenas uma amiga que eu me sentia aberto para falar qualquer coisa. Os anos se passaram e a vida adulta nos tornou distantes, não menos amigos, mas incapazes de estarmos juntos para compartilharmos as desventuras do tempo presente.
Por isso escrevo essas linhas bagunçadas contando um pouco da minha história. Se não fosse para você, caro leitor, para quem mais seria? Um escritor está destinado a lacrimejar sobre as suas palavras tal como musicista se mutila por uma composição. Para quem Adele gritaria que estava rolando pelas profundezas senão para as rádios do mundo todo? Fazer arte não é sobre se expor, mas esperar que do seu lamento uma alegria floresça, para quem consumir sentir que não está sozinho e que existe alguém disposto a escrever sua frustração para que a dor seja somente sentida pela arte e não pela realidade.
Uma mensagem chegou naquela noite de verão me convidando para ir ao cinema. Senti o desejo de recusar, mas eu estava cansado da solidão que me afligia dentro daquele apartamento quente. Meu irmão tinha brigado comigo, meus pais ignoraram tudo o que havia dito sobre um certo assunto, uma reunião nada excitante me esperava e o banho ao invés de relaxar parecia que tencionava meus músculos ainda mais. Tudo estava confuso e a única coisa certa era a presença da minha música favorita, Somewhere only we know, ecoando pelo banheiro e me levando a um lugar seguro: a casa das flores.
- Abaixa essa merda!- Gritou o meu irmão Vicente do outro lado da porta- Tô tentando estudar.
Não questionei. Então, a voz do Keane foi ficando semelhante a um murmuro, mas ainda me consolava e me conduzia para um oásis de equilíbrio, respirando e inspirando, mandando para longe a ansiedade o espanto que me assombrava de sair pela primeira vez com um menino. Por fim, decidi aceitar o convite.
Aceitei relutante. Estava disposto a ir mais para fugir de uma atmosfera tóxica do que pelo interesse na outra pessoa, chamado Tiago, um dos meus calouros que ingressaram no início do ano. Lembro-me de conhecê-lo pela primeira vez durante o trote que organizamos. Ele estava todo pintado de azul, com cabelo ressecado pela tinta fresca e a pele arrepiada de frio. Eu fiquei indiferente ao vê-lo pela primeira vez, mas uma parte de mim gostou de vê-lo sorrindo. Parecia genuíno, completamente feliz, alguém para confiar. As primeiras impressões não dizem muito. Pode ser um reflexo do momento, não um hábito de vida. Deixei em aberto as minhas proposições, não queria pensar em muita coisa. Conversamos também por mensagem antes, mas posso dizer que rompemos a barreira da cordialidade e investimos no flerte quando o avistei pedindo dinheiro no sinal, costume do trote realizado pelos calouros.
Ele me pediu dinheiro e apontou a plaquinha do Pix para que eu fizesse uma transferência. De modo nenhum eu perderia a oportunidade de demonstrar interesse e ver onde que essa história poderia me levar. Passei um valor de dez reais e escrevi na mensagem de envio: "Vale um beijinho?". Pronto, o primeiro passo estava dado.
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O destino dos Imbecis
RomancePerdido dentro de si mesmo, bebendo álcool de todas as cores e cansado de viver uma vida sem graça, Felipe, por fim, colapsa. É é no colapso que ele descobre um dom: a capacidade de despistar o Tempo, viajando entre eras e roubando legados construíd...