Capítulo 23

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Duas pequenas folhas espiralavam pelos corredores frios e escuros, dois únicos pontos de cor em meio ao cinza que parecia amplo demais, vago demais. Parecia que, se desse mais um passo, cairia ou seria carregada pelo vento.

Um.

Dois.

Três.

Ana Foster havia partido. E, em seu corpo, o oco do sono de que se acorda sem memórias.

Uma a uma, as pessoas surgiram diante de si, rodopiando em uma dança desordenada e, ao mesmo tempo, puramente puxada pela sinfonia. Em um pequeno púlpito, a silhueta de alguém observava com calma e atenção, em sua cabeça sete estrelas.

No centro de toda a comoção, algumas crianças brincavam, como sempre faziam nessas ocasiões. Usavam fantasias, asas e penas espalhafatosas, que se misturavam em uma pintura impressionista.

A princesa, com seus pequenos olhos encantados pelo brilho da cena, virou-se para quem a tomaria em seus braços. O cheiro de amora e alfazema preencheu o lugar com a cor quente dos sentimentos, que faziam uma correnteza em si, quando encontrou a face familiar.

Orlagh Marabell colocou a mão em seu rosto, tão familiar e tão estranho, e daqueles mesmos olhos maravilhados as lágrimas começaram a rolar. A mãe, alheia àquilo como se fosse apenas uma projeção, sorriu dos lábios rosados aos olhos cinzentos e até cada um dos cachos acobreados que pareciam cercados de luz.

E Philip Foster se aproximou, abraçando as duas como se fossem seu bem mais precioso. Como se fosse a última vez.

E ela sorriu de fechar os olhos, mesmo em meio ao choro. Mesmo quando suas pequenas mãos agarraram os pais, tentando levar um resquício de suas vidas consigo. Mesmo quando seus corpos, mornos e acolhedores, se dissolveram em pó e luz estelar.

Mesmo quando abriu seus olhos, rodeada apenas pelo frio assombroso que só era sentido quando se perde algo.

E, na umbra, uma pequena fagulha flutuou, se afastando lentamente.

A menina respirou fundo, agora adulta, e a seguiu para o desconhecido. Mas nada a havia preparado para o que teria que testemunhar.

Ao longe, onde seus olhos mal podiam alcançar, estava o castelo. Torres e torreões prateados, perfurando as nuvens vermelhas em um céu purpúreo e opaco, com as cinzas que a rodeavam. E, ao seu redor, a estrada dourada dos sonhos, tão bela e brilhante, se tingia de negro.

Ela deu um passo à frente, mas foi incapaz de prosseguir. Em seus pés, descalços, o piche subia como tentáculos que a puxavam para baixo. O cheiro de ferro, pungente, invadiu seu sistema, ao que percebeu no que realmente estava pisando.

Ofegante, tentou se desvencilhar daquilo, dos fios arroxeados que pareciam cabelos se enroscando em seus tornozelos. Do sangue das fadas.

Em toda parte, um som horrível, jamais ouvido em qualquer pesadelo, a sufocava, e ela caiu de joelhos, tapando os ouvidos. Precisava que aquilo parasse, precisava sair dali.

Precisava esquecer. Preferia esquecer. Preferia que tivesse permanecido na ignorância de tudo que lhe ocorrera até aquele momento.

E, como se atendesse sua prece, o mundo ficou em silêncio.

Ela abriu os olhos, devagar, se reacostumando à fraca luz que vinha do fim daquele longo corredor escuro. Não podia ver bem, mas foi suficiente distinguir a silhueta de uma mulher. Loira, branca mas coberta de cinzas.

E, depois, de outra. Cabelos vermelhos chamuscados, ralos, voando com o vento. Em seu colo, percebeu, havia uma criança, não muito pequena, cerca de sete anos. Dormindo, como se nada daquilo estivesse acontecendo.

Ela assistiu, em silêncio, e seu coração pareceu pesar uma tonelada, ao mesmo tempo que subir pela garganta.

A mulher ruiva, a princesa, entregou a criança para a outra, lhe deixando apenas um beijo na testa, e sumindo como fumaça pela escuridão.

O silêncio que se seguiu foi sepulcral, assim como pareceu o peito de Ana. Seu coração era como um túmulo para aquelas memórias, para aqueles sentimentos que lhe foram tirados por tantos anos. Por magia.

Agora ela sabia.

E, de algum modo, não foi isso o que mais doeu. Não, com certeza não. Mas saber que Ana Foster jamais voltaria do transe.

Anika Marabell abriu os olhos, naquela cabana na floresta, as lágrimas impedindo completamente sua visão.

Aurora | Adhara: Deraia - Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora