AS CRÔNICAS DE NÁRNIA
VOL. V
A Viagem do Peregrino da Alvorada
1
O QUADRO
Era uma vez um garoto chamado Eustáquio Clarêncio Mísero, e na verdade bem merecia esse nome. Os pais diziam Eustáquio Clarêncio, e os professores, apenas Mísero. Não posso dizer como era chamado pelos amigos, pois não tinha amigos. Não tratava o pai e a mãe por papai e mamãe, mas por Arnaldo e Alberta. Os pais eram gente moderna, de idéias abertas. Vegetarianos, não fumavam nem bebiam, e usavam roupa de baixo de fabricação especial. Havia muito pouca mobília em sua casa, pouquíssima roupa de cama e mantinham sempre as janelas escancaradas.
Eustáquio gostava de animais, especialmente de besouros quando estavam mortos e espetados num cartão. Também gostava de livros instrutivos, com gravuras em que se podiam ver armazéns para guardar cereais ou robustas crianças estrangeiras fazendo ginástica em escolas-modelo.
Eustáquio não gostava nada mesmo era dos primos, os quatro Pevensie: Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia. Mas ficou contentíssimo quando soube que Edmundo e Lúcia vinham passar uns tempos com ele, pois lá no fundo adorava bancar o mandão e chatear os outros. Apesar de ser um molengão, que na hora da briga não conseguia nem enfrentar Lúcia, e muito menos Edmundo, sabia que há muitas maneiras de aborrecer os outros, quando a casa é da gente e eles são nossos hóspedes.
Edmundo e Lúcia também não sentiam a menor vontade de ir para a casa do tio Arnaldo e da tia Alberta, mas não tinham outro remédio. Naquele verão, o pai arranjara uma vaga como professor nos Estados Unidos, durante quatro meses, e a mãe resolvera ir com ele.
Pedro, que tinha de preparar-se com todo o afinco para o exame, passaria as férias recebendo aulas do velho professor Kirke, em cuja casa as quatro crianças tinham tido aventuras maravilhosas, já havia muitos anos, na época da guerra. Se o professor ainda morasse na mesma casa, os garotos teriam ido para lá; mas, depois daquela época, ele perdera tudo o que tinha e vivia agora num chalé, com apenas um quarto vago.
Como ficaria muito caro levar os filhos todos para os Estados Unidos, somente Susana tinha partido com os pais. A gente grande achava Susana a mais bonita da família. Como era bem desenvolvida para a sua idade e não tinha grande queda para os estudos, a mãe dissera que “ela aproveitaria mais a viagem do que os outros mais novos”. Edmundo e Lúcia fizeram o impossível para não sentir inveja de Susana, mas era de fato horrível ter de passar as férias na casa da tia.
– Para mim ainda é muito pior – dizia Edmundo –, porque você terá um quarto separado, enquanto eu terei de dividir o meu com aquele nojento do Eustáquio.
A nossa história começa numa tarde em que Edmundo e Lúcia aproveitavam juntos alguns minutos preciosos. Como é óbvio, falavam de Nárnia, nome do país secreto deles. Acho que quase todos nós temos um país secreto, que, para a maioria, é apenas um país imaginário. Edmundo e Lúcia eram bem mais felizes: o país secreto deles era verdadeiro. Já tinham até visitado Nárnia duas vezes, de verdade, não sonhando, nem brincando. É claro que tinham conseguido chegar lá por Magia, que é a única maneira de atingir Nárnia. E tinham prometido que lá voltariam algum dia. Assim, você pode imaginar como eles falavam de Nárnia, sempre que podiam.
Naquela tarde, estavam sentados na beira da cama no quarto de Lúcia, olhando para um quadro pendurado na parede – o único quadro de que gostavam em toda a casa. Tia Alberta detestava o quadro, mas não podia jogá-lo fora, pois fora presente de casamento de uma pessoa a quem não queria ofender. Representava um barco navegando em nossa direção. A proa era dourada e tinha o formato de uma cabeça de dragão de boca escancarada. Tinha apenas um mastro e uma grande vela quadrada de um vivo tom de púrpura. As laterais do barco, só visíveis onde terminavam as asas do dragão, eram verdes. Estava exatamente na crista de uma grande onda azul, e o côncavo da vaga mais próxima, franjada de espumas e salpicos, parecia vir para cima da gente. Via-se que corria ligeiro, impelido por um vento forte, inclinando-se um pouco para bombordo. (A propósito, se você está mesmo resolvido a ler esta história, acho melhor ter em mente que a esquerda de um barco, quando se olha de frente, é bombordo, e a direita é estibordo.) A luz do sol incidia sobre o lado inclinado do barco e a água estava cheia de tons verdes e roxos. Do outro lado, o mar era azul-escuro, devido à sombra do barco.