Parte 1

19 2 0
                                    

Eram seis da manhã, em ponto. O carro de Eliza era o único na longa estrada para Miranda do Norte. Uma hora e meia. Foi a distância que Beatriz, sua melhor amiga, disse que ficava Miranda do Norte em relação ao município de Canaviais, onde as duas moravam e cursavam o último período da faculdade de psicologia na única universidade da cidade. Eliza não parava de pensar naquela informação, já estava viajando há quarenta minutos, então ainda tinha muito asfalto para as rodas do seu Chevrolet cinza ultrapassarem. O que só fazia sua ansiedade misturada com um nervosismo compulsivo crescerem a cada segundo. Nem mesmo as suas músicas favoritas da Letícia Letrux tocando na rádio do veículo conseguiam manter sua mente mais calma. Pelo menos, ela pensava, as ruas estavam vazias, seu único companheiro naquele árduo trajeto era o nevoeiro matinal, seu pior inimigo. Eliza não sabia dizer o porquê, mas não simpatizava com nevoeiros. Para ela, eram como tênues cortinas brancas, mas eficazes o suficiente para ocultarem quaisquer que fossem as maravilhas ou terrores do mundo. Eram terrivelmente imprevisíveis, tão avassaladores quanto uma tempestade, quase alienígenas. E em um determinado momento da viagem, Eliza se viu rodeada de neblina. Seu coração batia tão forte que ela chegava a escutá-lo por sobre a música no carro, cuja mesma ela se viu obrigada a diminuir o volume até quase ser impossível de ser ouvida, de tão intimidada que estava se sentindo, com medo de chamar a atenção do que quer que à espreitasse além daquela imensidão branca. Seus ouvidos à traíram quando o ruído de seu celular vibrando cortou aquele silêncio opressor. Eliza pulou de susto e quase sofria um acidente. Pegou o aparelho rapidamente, ele se encontrava pousado sobre o banco do carona, e atendeu sem nem verificar quem chamava do outro lado da linha.

-Alô... alô? - sua voz falhou e Eliza tossiu.

-Você foi sem mim? - era Beatriz.

-Ah, me desculpa, sério, eu não sei o que me deu. Desculpa por ter te feito acordar cedo pra nada. - Eliza se desconcertava nas palavras.

-Eu não tô brava por isso, e sim por você estar indo sozinha pra essa viagem quando claramente precisa de uma companhia para ajudá-la emocionalmente. Por que está fazendo isso?

Eliza não conseguiu responder, estava se sentindo péssima por tudo aquilo.

-Desculpa, tá? Eu não quero te julgar. É que eu me preocupo com você. - Beatriz acalmou, com o tom amável.

-Eu não queria te incomodar.

-Mas Eliza, eu me prontifiquei pra ir com você.

-Eu sei, eu sei. Tenho plena consciência disso. - ela sentia as lágrimas encharcando seus olhos. - , eu tenho isso de achar que, independente do que for, meus assuntos pessoais sempre vão atrapalhar as outras pessoas, eu não sei, eu me sinto como um empecilho ambulante na vida de quem eu tenho algum tipo de vínculo afetivo, e eu me odeio por isso.

-Isso é uma visão equivocada de como as coisas realmente são, mas reconhecer é o primeiro passo para mudar esses comportamentos, e também a parte mais difícil.

-As pessoas sempre dizem isso, mas eu nunca sei o que fazer depois. Eu nem sei direito se eu realmente reconheço ou se só reproduzo o que os outros falam sobre mim.

Eliza ouviu um longo suspiro do outro lado da linha, ela se sentia profundamente mal.

-Eu entendo você, amiga, afinal você tem todos os requisitos traumáticos para ser uma pessoa completamente transtornada com essas questões. - Beatriz falou, sarcástica, porém, teve receio de ter tocado numa ferida em particular.

Para o alívio dela, Eliza riu.

-Confessa, Beatriz, você tá no limite do cansaço com a nossa amizade.

-Quer que eu seja sincera?

-Sempre.

-Eu estou cansada, sim, mas não da nossa amizade, tô cansada de lidar com os mesmos surtos, toda vez. Você nunca aceita a ajuda das pessoas por medo de incomodar, às vezes você estuda demais até atingir o limite do esgotamento e desmaiar, às vezes você comete um erro, que às vezes nem é grave, podendo até ser considerado algo normal da natureza humana, mas vai sempre ter um impacto mais intenso pra você. Eu te entendo, completamente, eu realmente entendo, mas estou exausta dos seus problemas. E é por isso que eu vou estar com você até o fim, pra te ajudar a se livrar dessas merdas.

Eliza esboçou um sorriso, ela sabia que tinha feito a melhor escolha quando fez amizade com aquela garota.

-Você é a melhor. Ah, Beatriz, você sabe me dizer se existe algum tipo de fobia à neblina?

-Fobia à neblina? - Beatriz riu. - Eu acho que não, por quê? Você tem medo de neblina?

-Ah, eu sei lá, elas não são assustadoras pra você?

-Nem um pouco. Assim, é só vapor d'água condensado, o que tem de ameaçador nisso?

-Acho que o que me amedronta é o fato de ter algo tapando a minha vista. O que pode ter do outro lado de um nevoeiro?

-Acho que, na maioria das vezes, nada. Mas o que talvez te assuste seja o desconhecido, não ter controle sobre algo, ou como se uma venda tapasse os seus olhos, mesmo. Bom, vamos adicionar à sua longa lista de transtornos mentais.

Eliza riu novamente, a capacidade da sua amiga de fazê-la se divertir com coisas tão sérias e, por vezes, até trágicas, era incrível.

-Me prometa que irá a um psicólogo quando tudo isso acabar. - a voz de Beatriz assumiu um tom sério.

-Eu não sei, não gosto de psicólogos.

-Olha só que paradoxo, não gosta de psicólogos, mas está prestes a se tornar uma. - Beatriz provocou e ambas riram à gargalhadas.

-É sério. Eu seria uma ótima psicóloga, ouvindo as pessoas. Mas me abrir para alguém é a coisa mais desconfortável que existe.

-Por que você acha isso?

-Bom, todos os psicólogos que eu fui pediam que eu falasse sobre o meu passado trágico, e eu odeio falar sobre isso.

-Por quê?

-Porque é trágico e horrível, tá bom? A minha mãe sofria com essa doença, a síndrome de Behringer, um espectro da esquizofrenia, causada por um evento traumático que desencadeia sintomas como ilusões ultra realistas e, o principal, a negação de um fato da própria história da vida da pessoa e a substituição do mesmo por uma mentira que para ela é como se fosse a mais pura verdade. Para a minha mãe, bom, ela acreditava que durante a sua infância ela foi visitada por uma versão dela do futuro que tinha que se certificar de que ela vivesse exatamente as mesmas coisas que essa versão futurística viveu, para que não houvesse nenhuma alteração catastrófica em sua vida. Quando eu era criança, no entanto, minha mãe achava que eu era uma versão dela do passado, e ela deveria fazer com que eu vivesse tudo exatamente igual ao que ela viveu. Imagina o quão horrível é viver a sua infância como alguém nos anos setenta. Foi um verdadeiro inferno.

Um silêncio pairou por alguns segundos na chamada.

-Você não pode ignorar o seu passado pra sempre, Eliza, deve confrontá-lo.

A chamada caiu por falta de rede móvel. Eliza praguejou mentalmente e viu as horas no celular. Seis e meia. Ela levantou o braço, olhou a sua tatuagem no meio do dorso do antebraço e, sem hesitar, começou a coçá-la até a pele ficar vermelha, colocando o carro no automático para tirar as mãos do volante. Respirou fundo após o ato, relaxando o corpo, e tornou a digirir normalmente, até seu carro ficar lento e parar completamente.

Fim da parte 1

Homem-NévoaOnde histórias criam vida. Descubra agora