Introdução

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Como de costume, eu acordo com o cabelo e a mente bagunçada, sem saber direito onde estou. Só que dessa vez me parecia verídica a hipótese de realmente não saber onde eu estava. Espremo melhor os olhos e finalmente me dou conta que estou encarando o teto do meu mais novo dormitório, o mesmo dormitório que eu dividia com uma garota completamente desconhecida, pelo o que me parecia

- Mia! Até que enfim acordou! - a garota desconhecida gritava - Estamos atrasadas para o primeiro período com o professor Parker!

A desconhecida não era tão desconhecida, ela se chamava Dorothea Williams, e era minha colega de faculdade há dois anos, mas não nos conheciamos muito bem até passarmos a dividir o dormitório há pouco mais de uma semana. Incrível como meu cérebro se parece com uma ameba antes das oito da manhã

- Precisamos mesmo ir a essa aula hoje? - pergunto, já sabendo a resposta - Não gosto nem um pouco desse professor

- Parker é um convencido, mas ele é um dos melhores - Ela diz, rindo - Parece que você foi atropelada por um caminhão

Eu apreciava a sinceridade espontânea - e não requisitada - de Dorothea. E apreciava também os seus longos cabelos loiros naturais, seu rosto rechonchudo e perfeitamente desenhado. Dorothea era curvilínea, nada magra mas nem um pouco gorda. Ela tinha um humor ácido e não sabia muito bem socializar, afinal não tinha amigos (o que faz com que eu a goste um pouco mais)

- Obrigada - respondo me arrastando pro banheiro

Ligo o chuveiro, deixo a água esquentando enquanto me encaro por uns segundos no espelho, pensando no que minha vida estava se tornando.

Há duas semanas que não falo com minha mãe, as coisas entre nós nunca foram muito boas, mas de um tempo pra cá estão ficando insuportáveis. Ela me expulsou de casa, o que me fez morar neste dormitório por tempo indefinido. Estou cursando a faculdade de direito há quase quatro anos, e mal dá tempo de trabalhar, ou seja, não tenho dinheiro suficiente nem pra alugar uma kitnet

Trabalho meio período em uma lanchonete perto daqui, lá eu faço de tudo; atendo as mesas, limpo o chão, as janelas, desentupo pias e privadas e fico na chapa quando o Harold, o chapeiro, se sente "indisposto" (tradução: com uma ressaca do tamanho de Nova Jersey). Lá não paga muito bem, então o valor máximo de um aluguel que o meu orçamento me permite pagar é o do dormitorio do campus.

Não que eu esteja reclamando da minha vida, nem pensar! Sou muito grata ao fato de eu ter conseguido uma bolsa para entrar para a Ivy league, com uma faculdade como a minha o mundo se torna a minha ostra. É difícil, mas não é impossível

Saio do banho e me visto correndo, Dorothea já havia saído como sempre, ela não suportava a ideia de chegar atrasada em algum lugar. Pego minha mochila e alguns livros em cima da minha estante e saio correndo. Tropeço na porta de saída do mini prédio de dormitórios e ajo como se nada tivesse acontecido

Abro a porta do prédio de direito e voo pelo corredor, subindo os dois lances de escada como um foguete. Sem querer eu abro a porta da sala como se uma manada de elefantes estivesse a arrombando, todos presentes olham para a minha cara, inclusive o senhor Parker, que me fuzilava como seu olhar gélido

- Me desculpa - sussurro quase inaudível

- Vejam só! Já que chegou atrasada, senhorita Davis, a senhorita irá responder a minha pergunta - O senhor Parker diz

- Que pergunta? - respondo prontamente

- Sente-se, Davis - ele manda

Caminho como uma gazela indo pra boca do leão, tentando não errar nenhum passo, evitando passar outra vergonha maior na frente das dezenas de alunos que estavam me encarando naquele exato momento

- Estava conversando com os demais alunos sobre um caso em que eu estou trabalhando há alguns anos...- Parker começa - Abuso físico e mental. Perguntei a eles sobre casos assim, como eles procederiam em casos como esse...

E eu me perguntava onde é que aquele cara queria chegar...

- Não teve um que me deu instruções corretas! - Parker se vangloriava - E sabem por que? - todos acenam que "não" com a cabeça - Porque o abusador não é o homem neste caso, e sim uma mulher de no máximo 80 kilos, lindos e angelicais olhos azuis e a cara de vítima

- Como pode ter a certeza de que ela é a abusadora? - Pergunto, preciptada. Ele ri ironicamente

- Provas, Davis! Contra provas não há argumentos - Ele responde. Minha vez de rir

- Provas? Provas podem ser manipuladas! - ele me fuzila com o olhar - É muito conveniente para o homem apenas jogar a culpa em uma mulher

- São provas veridicas, gravadas e documentadas! - ele argumenta, nervoso

- Então o senhor está defendendo o homem, né? - pergunto

- Claro que sim! Ele é a vítima da situação! - ele se defende

- Muito conveniente um advogado homem defendendo sua "vitima" que por acaso também é homem! - falo, sem pensar

Todos ao redor olhavam a nossa discussão, incrédulos. O professor Parker não era aberto a discussões, ele mal aceitava que respirassem alto em suas aulas, se por acaso algum dos alunos o tratasse como eu estava o tratando naquele momento, certamente o aluno já não faria mais parte das aulas dele. E eu havia esquecido disso por um breve momento, até que;

- Isso! É justamente nesse ponto que eu queria chegar, senhorita Davis! - Ele aumenta o tom da voz - Quando a senhorita entrou como um foguete, interrompendo a minha aula, eu estava perguntando as minhas alunas mulheres se por acaso elas desejavam me acompanhar nesse caso, como um estágio remunerado, valendo também como horas complementares...- meu coração dispara - Mas ninguém se disponibilizou ainda...

De repente, todas as garotas se levantaram de suas cadeiras e começaram a argumentar sobre como elas deveriam ser escolhidas. Eu me afundo na cadeira, ao perceber o tamanho da vergonha que havia acabado de passar, e cogitar que provavelmente teria que aceitar o fato de não ter mais as aulas dele em meu currículo

- Mia Davis! - ele diz com um enorme sorriso no rosto - Por sua falta de fé, você é a escolhida!

Aí sim o meu coração para de vez. Eu? Porque eu? Eu sei que seria ótimo para o meu currículo participar de um estágio ao lado de James Parker, mas eu não podia! Tinha meu suado emprego, minhas contas pra pagar, meu dormitório para manter. Eu não podia simplesmente jogar tudo isso pro alto... E quem me garante que ele ganharia esse processo e eu receberia 1 centavo de salário?

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