adônis & nikanor

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"Como sol, faces púrpuras, desponta
Com o adeus final da aurora se carpindo,
À caça, Adônis, rosto em cor, se apronta.
Se ama caçar, caçoa do amor, se rindo.
Doente de amar, Vênus se lança atrás,
Corteja-o feito um pretendente audaz."

"Vênus e Adônis", de William Shakespeare

Muito se falou, se escreveu e até hoje se fala e se escreve sobre como Adônis, o caçador, conseguiu se desvencilhar tantas vezes das tentativas sedutoras de Vênus, deusa do amor, em dominá-lo. O poema mais famoso à época, e talvez até hoje, de William Shakespeare, nos mostra apenas a superfície de um precipício muito profundo e elaborado do desejo... É dito isto, pois lhe escapa nos mais de mil versos e 199 sextilhas o que, de fato, se passava na mente do habilidoso caçador naquela tarde em que tragédia o acometeu, sua vida foi tirada e seu corpo, tornado em flor.

A verdade se deita em que Adônis estava terrivelmente, interminavelmente, furiosamente, lindamente apaixonado por Nikanor, pescador de um vilarejo além do rio. Adônis ouvira antes sobre os encantos do amor, mas nunca tinha de fato experimentado como o fazia agora, deleitando-se saborosamente da sua doçura feita da mesma coisa que se fazem os sonhos. Estava embasbacado, quase irresponsável. Pegava-se mais de umas vezes rindo de si mesmo.

Seu ser não parecia mais lhe pertencer, estava sempre divagando, sentindo falto do afago e do encaixe do outro corpo contra o seu. É preciso esclarecer que não foi no atributo físico onde Adônis encontrou sua rendição; não no formato do queixo de Nikanor, quase que lapidado à faca, em seus caracóis marrons cobrindo-lhe toda cabeça e testa, nem nos olhos que levavam a divagar, ou na firmeza de seus músculos. Foi no trejeito. Na movimentação de corpo, no jeito que tomava ar para dizer as mais lindas coisas. No jeito em que seus dedos se deslizavam facilmente contra sua mão. Em como se lambuzava comendo uma fruta, de olhos fechados, concentrado e babão. No deleite. Na inocência nada burra da alma. Todos os mais detalhes do mundo possíveis de se descrever ajudando na formação do retrato desse amor correspondido. Invisível a olhos, nítido ao espírito.

E o plano tinha sido traçado. Lá onde viviam não podiam se juntar, sendo então não mais uma opção ficar. Fugiriam para longe, passariam por outros bosques e beberiam de outras fontes. Estava tudo combinado e Adônis era caprichoso, detalhista. Qualquer mudança, mandaria avisar. Em códigos. O amor tem muitos códigos...

No dia chegado, a viagem seria noturna. Não iam fugidos, mas também não fariam nenhum anúncio. Levariam só o essencial do essencial, cada um em uma mão, pois a que sobrara tinha outra mão para agarrar. Só a lua e suas estrelas testemunhariam. Adônis falou para Nikanor:

− Deixe tudo pronto. Voltarei com caça, ceamos e partimos. Meu Sol.

E o Sol era Adônis, também, para seu Nika.

Juntos, porém, amantes não iriam ficar.

Adônis não previu de antemão que em sua tarefa encontraria um alarde. Vênus, a deusa do amor, perpassando por si em definitiva missão. Ainda que estivesse muito atento a que viera, pôde perceber como tal deusa tinha recursos.

Se deu uma sucessão de tentativas de laço. Era de fato uma mulher extraordinária, de força vigorosa e arrebatadora, linda e voluptuosa. E sabia das coisas, do que gostavam homens. Homens e mulheres. Mas a Adônis nada disso interessou. Tinha o que almejava. Conseguiu escapar dos tentáculos longos e habilidosos floresta adentro.

Alto num galho, perto da copa, discreto como um felino, Adônis padecera à missão e se pegou sonhando mais uma vez. Pensando em Nikanor, Nika, em como se cruzaram e os dias depois... Os dias que se tornaram hoje e se tornarão amanhã, um eterno único longo dia desde então.

Adônis & NikanorOnde histórias criam vida. Descubra agora