Um passo seguido por outro passo, num caminhar constante sobre o chão empoeirado. Não sabia ao certo quando os pés haviam adentrado nesse ciclo exaustivo e sem ares de findar. Na verdade, tinha a impressão de que sempre fora assim: passos e mais passos, precursores de outros passos. Nas primeiras lembranças, enevoadas e confusas, daquele tempo agora há muito distante, recordava-se de seus pezinhos vacilantes já em movimento, a conduzirem-no a lugar nenhum enquanto se formava na mente a consciência de que era alguém. Parecia-lhe estranho o fato de mal ter se dado conta da própria existência e já estar enredado naquele perambular constante, mas ainda mais estranho era continuar não sabendo aonde a tal estrada, teimosa em nunca terminar, o levava. Em seu âmago, mesmo depois de tantas milhas percorridas, continuava sentindo que avançava rumo a lugar nenhum, numa trilha na qual fora jogado impiedosamente, sem bússola, sem um fim.
O caminho demonstrara-se sempre inconstante, transitando entre o agradável e o assustador. Pelo menos assim havia sido até o marasmo se estabelecer. Entretanto, não queria pensar no marasmo, cuja consequência se manifestava na trilha agora sempre tortuosa, íngreme, correndo por entre as incansáveis paisagens hostis e sombrias. Queria manter em vista aqueles momentos do início da jornada, quando os ladrilhos da estrada revestiam-se de amabilidade, conduzindo-o por entre campos verdes e florestas solenes. Frequentemente, pegava-se perdido nos resquícios daqueles primeiros anos, tempos felizes que diante da atual realidade convertiam-se em fardo. Apesar disso, não tinha pretensão de afastar as memórias capazes de evocar o tempo passado. Assim, não hesitava em fechar os olhos e lembrar. Podia sentir novamente o toque sereno da luz do sol a lhe aquecer a pele enquanto evocava calmaria em sua mente. O vento mal-humorado surgia de repente, trazendo um exército de folhas e pétalas rodopiantes em seu encalço. Ele fazia um estardalhaço ao provocar as árvores, empurrar a relva, desmanchar as nuvens do céu azul, bagunçar-lhe os cabelos. No meio daquela balbúrdia toda, o vento lançava-se contra seu corpo e enchia seus pulmões de liberdade, seu futuro de perspectivas.
Perspectivas. Já abrigara tantas delas, mas agora não conseguia pensar em nenhuma. Olhou para os pés cansados, depois para a estrada quebrantada, na qual ervas daninhas espremiam-se por entre as pedras gastas do ladrilho. E foi assim que sua única perspectiva ainda cultivada revelou-se: prosseguir. Percebeu, contudo, que esse era um prosseguir apenas por prosseguir, sem finalidade qualquer. Sentiu-se triste. Recordou que assim havia sido também em seus primeiros anos, mas naquela época isso não importava, pois seus pés ansiavam por continuar, sempre continuar. Pouco tempo depois, deparou-se com uma encruzilhada, demarcada por um marco, que erguia-se rumo ao céu acinzentado e apontava suas muitas setas de madeira enegrecida para todo lado. Uma seta para cada possibilidade de caminho. Havia tantos deles que nem se preocupou em contar. Ao acaso, tomou qualquer um deles e continuou, ouvindo o som de seus passos sobre pavimento.
Nem sempre fora tão simples escolher. Um marco no caminho significava muitas horas de reflexão e mesmo discussão com outros errantes. A expectativa crescia nesses momentos. O que cada um daqueles caminhos poderia trazer? Faria a escolha correta? Sentia falta de ter alguma companhia. Antes, muitos seguiam a seu lado. Juntos tornavam-se um lar. Sempre sentiu-se seguro e feliz em tê-los por perto, laços fortes se formavam, promessas eternas eram escritas. Escritas no vento. Aos poucos, percebeu que as pessoas perdiam-se inexplicavelmente. Mesmo que suas mãos se agarrassem firmes a outras, uma hora seria inevitável perceber que nada mais segurava. Um a um seus companheiros errantes se perderam, mesmo aquele que mais amou e aquele que gerou. Descobriu que os laços eram tão vulneráveis quanto as promessas que o vento lhe arrancara.
E não foram apenas promessas e errantes que deixara para trás. A cada marco a surgir em uma encruzilhada, a cada escolha feita, deixava ali um pedaço de si. Nunca revestia-se de certeza inabalável após decidir-se por um caminho dentre todos os outros oferecidos pelo marco. Um espaço vazio dentro de si murmurava constantemente hipóteses do que teria sido de sua jornada e o que lhe teria sido entregue pela estrada caso tivesse seguido outros caminhos. Tais murmúrios tornaram-se cada vez mais insignificantes com o tempo. Porém, às vezes, eles ressurgiam inesperadamente, mergulhando-o em uma incerteza angustiante.
Foi tragado de seus pensamentos pela realidade ao deparar-se com outro marco. Olhou-o sem interesse, adentrando, em seguida, qualquer um dos vários caminhos. Não havia prosseguido muito quando a estrada se acabou, dando lugar a um enorme abismo. Nunca vira algo assim antes. Lá embaixo, não havia nada além de escuridão. Percebeu que ali o céu transitava entre tonalidades de vermelho e cinza num fundo de breu e o vento cantava uma canção funesta, capaz de evocar o frio. Refletiu por alguns segundos enquanto observava a poeira do chão sendo arrastada à boca do precipício. Decidiu voltar pelo mesmo caminho que o trouxera até ali e, para sua surpresa, encontrou a encruzilhada. Antes, nas inúmeras vezes em que tentara retornar, jamais fora capaz de encontrar o marco no caminho outra vez. Seguiu todos as possíveis trilhas da encruzilhada e todas acabavam na boca do abismo. Estava cansado, ofegante, escorando-se em uma das pedras próximas ao vazio a sua frente. Algo lhe dizia que não poderia esperar muito mais. Fora feito para prosseguir. Não importava o que o caminho lhe trouxesse. Sabia que o abismo e a escuridão o aguardavam. Aproximou-se da borda e encarou seu destino. Aos poucos, pôde ver que seu reflexo se materializava na garganta temerosa do precipício. Pôde, então, ver o nada.
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Caminhos e Encruzilhadas
Short StoryUm breve conto sobre caminhos e encruzilhadas que enfrentamos ao longo da vida.