a praia.

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Any Gabrielly

Passaram algumas semanas desde o dia em que eu quase me deixei levar pelo desejo, e estavam sendo seguidos praticamente por um roteiro. Ensaiamos, alongamos e então Joshua está me levando novamente para casa, mesmo depois dos meus protestos. Tentei pegar táxi uma vez, mas ele me viu, e não consegui convencê-lo de ir sozinha. Eu dormia e tudo se repetia mais uma vez no dia seguinte. Hoje era sábado, e tínhamos um dia de folga e eu não tinha planos.

Pensei em pintar algum quadro, inclusive fiquei mais de meia hora sentada no meu banquinho em frente a uma tela em branco, esperando uma inspiração vir, mas nada. Fiz apenas um traço preto que ficou perdido em meio a tanto branco, o que me representava de certa forma. Desisti de fazer algo inspirador.

Estava deitada no meu sofá, enquanto admirava o filme velhíssimo que passava na televisão, e mesmo não prestando tanta atenção quanto deveria, eu ainda sim conseguia me distrair de uma tarde tediosa. Aquele era o filme preferido da minha mãe, e antes de tudo nos separar, vimos uma última vez. Parece que adivinhamos que nunca mais iríamos assistir Psicose juntas, e que tudo na minha vida iria desandar de um jeito descontrolado. Lembro-me da nossa última viagem juntas, e foi coincidentemente - ou não - para a França. Ficamos aqui por muitos dias, e logo quando voltamos para São Paulo, ela descobriu um câncer em estágio inicial bem no pulmão. De início ficamos tranquilas, até porque o médico nos garantiu que estava tudo nos conformes e que com o tratamento ela iria conseguir viver normalmente.

Mas após alguns meses, eu não reconhecia mais minha mãe de tão deplorável que era seu estado. Ela estava magra como nunca imaginei vê-la, pálida e com os lábios quebradiços de tão ressecados. A única expressão que tinha em seu rosto, era tristeza, cansaço. Eu ficava sempre ao lado da cama do hospital, e segurava sua mão que já não tinha mais forças para me passar a segurança que tudo iria ficar bem. Ela adorava que eu cantasse "Rewrite the Stars" bem baixinho enquanto passava pelas sessões de tratamento, principalmente quimioterapia e eu sempre estava ali do lado dela, tentando ser forte por nós duas, já que eram nós duas contra tudo e todos. Mas agora era apenas eu. Sozinha contra todos, e ainda a visitando.

A pedido seu, ela estava enterrada em um cemitério aqui em Paris, num cemitério extremamente bonito e não tão longe de casa. Qualquer dia que alguém olhasse, iria ter um buquê de lírios e peônias na frente da lápide que também estava sempre limpa. Suas flores preferidas eram as minhas também, e eu sempre fazia questão de deixar flores noves pelo menos uma vez por mês na grama aparada do cemitério, que tinha um cheiro incrivelmente agradável.

Me levantei do sofá minutos depois que os créditos passavam pela tela, após o término do filme e fui em direção ao banheiro. Tomei um banho rápido, apenas para tirar a sujeira que estava presa em meu corpo desde o momento em que acordei. Não havia almoçado, e precisava comer algo, mesmo contra a minha própria vontade. Lavei meus cachos depois de alguns dias, e finalmente saí do banheiro, cheirando a lavanda e apenas com uma toalha na cabeça. Vesti uma calça de wide leg de couro, uma blusa branca que se abrigava por dentro da calça, botas pretas e um casaco bem quente por cima de tudo isso.

Alcancei meu celular, e disquei os números que eu já estava até acostumada a digitar. Por alguns segundos, eu fiquei na espera, mas logo uma voz feminina me atendeu.

— Bonjour, Any. O de sempre?

— Sim, o mais rápido possível.

A brisa forte batia em meu rosto, enquanto minhas narinas inalaram o clima fresco e salgado da praia completamente vazia. Dei um trago no meu cigarro, sentindo tudo mais leve que antes, como uma anestesia que nunca teria na vida.

Sapatilhas Douradas - Beauany Onde histórias criam vida. Descubra agora