Instinto

Capítulo I

Escuridão. Só isso vinha a minha mente, provavelmente estava de noite, embora não tenha certeza, sombras espreitavam pelos cantos e sussurros assustadores ecoavam na tenda. No breu, olhos escarlates e sorrisos travessos me encaravam, rindo de mim. Elas estão por todos os lugares e eu não posso fazer nada, como se meu corpo inteiro estivesse paralisado, me forçando a ver seus rostos deformados por vários minutos, até que fossem embora após se satisfazerem do meu medo.

Achei que essas visões tinham finalmente cessado há semanas atrás, mas estava errado, agora vieram piores, mais horrendas, esses pesadelos se tornam reais, tão reais que consigo escutar o som de respirações próximas de mim ou às vezes começam a falar comigo, mesmo eu não entendendo uma palavra.

Meu sono obviamente foi pro saco, meus músculos doem, minha cabeça lateja sem parar e para completar, estou exausto, nem consigo mais fechar os olhos. A tenda começou a clarear, indicando o primeiro raiar do dia, apesar daquilo ter durado só alguns minutos é como se a noite inteira fosse perdida e mesmo que eu implorasse por só algumas horas de descanso, estou traumatizado o bastante para não querer dormir.

A tenda estava vazia e meio fria, sinal de que o inverno se aproximava. Yahto e Yhoki foram visitar outras matilhas, deixando só eu e meu filho para cuidar do lugar. Falando nele, Zhari continuava dormindo tranquilamente na rede, para ele nada de estranho aconteceu na madrugada, o que me deixa ao menos aliviado.

Por agora não preciso pensar muito nisso. Após arranjar forças, vou em direção a um jarro de água na ponta da cabana, encarando meu reflexo e vendo o quão acabado estou, havia olheiras pesadas na minha cara, o cabelo todo desgrenhado e bagunçado, parecia um verdadeiro festival de horrores. "Idiota". Jogo o líquido no rosto só para tirar a sonolência e enxugo com um pano que tinha ao lado

Depois de secar, visto um casaco de pele para amenizar o frio e saio da tenda com uma vassoura de palha nas mãos. Do lado de fora, a maioria das árvores já perderam suas folhas, criando diversas pilhas para todos os lados, o que fui aos poucos juntando num lugar só enquanto observava a paisagem distante das montanhas e da enorme cachoeira que descia pela encosta formando rios, um deles terminava num pequeno lago à frente da tenda.

Eu gosto de morar aqui, mas sempre sonhei em viver dentro de uma matilha, ter um território de caça, arranjar um alfa para acasalar, entretanto não quero me separar de Yahto e Yhoki, apesar de não serem meus pais verdadeiros, eles agiram como tal da melhor maneira que conseguiam, embora o trabalho de xamã sempre tenha nos afastado em várias ocasiões, fico feliz deles terem me acolhido aqui.

De todo modo, para onde eu iria? O clã do norte nas montanhas? Lá é muito frio, talvez meu corpo nem se adapte direito… ou o clã que está nas profundezas da mata? Nesse especificamente já cheguei a ouvir algumas histórias estranhas, sobre como é uma matilha violenta e misteriosa.

— O que raios estou pensando? Não é como se eu estivesse fazendo uma comissão de trabalho, esses lugares abominam lobos solitários, quanto mais alguém do meu calibre.

— Falando com o vento de novo, pai? — Involuntariamente deixei um gritinho fino escapar, olhando para trás, Zhari me encarava como se eu fosse maluco, fiquei tão perdido nos meus próprios pensamentos que nem ouvi os passos dele. Não sei a quem esse moleque puxou para ter pés tão leves.

— Papai estava só… imaginando como seria morar numa alcateia, sabe, formar uma família.

— Os tios são nossa família. — É nesses momentos que meu coração quebra um pouco, Zhari os conhece desde quando era bebê, então não consigo imaginá-lo se adaptando a outro lugar

— Sei disso filhote, mas você sabe que eu sempre quis casar. — Como não éramos atrelados a nenhuma tribo, ficava difícil para mim encontrar algum companheiro e isso vem martelando minha cabeça desde que Zhari nasceu.