Eiji fizera um acordo rígido consigo de preservar todas aquelas memórias em uma cápsula do tempo segura e bem enterrada em sua mente, contudo, era comum que uma ou outra informação escorregasse para a realidade, afinal, o verão provinciano japonês era inigualável. As cores, o campo, os lagos, a neblina fresca que repousava ao topo das montanhas, tudo fazia a América parecer tão suja e frívola. As comidas sazonais, os pedestres e a falta de uma iminência. Okumura pretendia mostrar tudo isso a ele.
Estava para completar o seu décimo ano desde os acontecimentos e Eiji se viu livre dos pesadelos, dos calafrios, da insônia e era sob esse mesmo pretexto que construíra o seu presente, em cima da segurança e pacificidade conquistada em sua terra natal. Por um tempo, buscou experienciar o jornalismo urbano, as verdades abafadas dos subúrbios, mas ao fazê-lo se sentiu violando a própria paz e a daqueles que repousaram cedo demais em sua última viagem. "Shorter teria adorado as comidas do interior". Os pensamentos rapidamente retornaram ao seu enclausuramento com o apito do computador.
As últimas gotas da tempestade da noite anterior refletiam feixes cintilantes através da janela onde se escorava, observando a calmaria da rua. O edifício de dois andares já fora um armazém, o primeiro andar era um espaço dedicado únicamente a máquinas de variedades alugadas - bebidas, comidas instantâneas e até souvenires - às quais os passantes tinham livre acesso durante todo o dia. Ao fundo, segura por um portão trancado, uma escada de madeira levava ao segundo andar, um espaço relativamente grande adaptado para moradia. Todos os "cômodos" eram anexos e o único espaço realmente delimitado por paredes era o pequeno banheiro. Há de se dizer, porém, que seu canto de conforto era aquela janela, um grande retângulo vertical possível de ser acessado mesmo quando sentado no chão. O seu exterior era enfeitado com trepadeiras abundantes e primulas já abertas e por ali Eiji observara as estações redecorando a paisagem, o filho do dono da loja de bebidas e seu guarda-chuva amarelo e, naquele momento, observava uma cabeleira dourada.
Okumura se impulsiona para trás surpreso pela similaridade, por vezes os fantasmas do passado o atormentaram, mas nunca de forma tão lúcida. Com muita cautela e receio, apoia novamente as mãos no batente e aproxima o rosto da ventana e assim, tais quais os resquícios da tempestade da noite anterior, olhos verdes o capturam completamente e dos lábios já conhecidos um sussurro escapa:"Tadaima"
Um sentimento há muito guardado consumiu seu peito e travou sua garganta. Não era capaz de ficar firme nos dois pés, por isso atravessou o sobrado aos tropeços e, agarrado ao corrimão, desceu cada um dos degraus com a perturbadora sensação de estar prestes a pisar em falso e cair num abismo obsoleto de ilusão. Ao chegar ao térreo observou um menino pondo uma moeda na máquina de chicletes e ao fundo a figura familiar, de pé, aguardando a sua chegada.
Foi como no último dia em que se viram.
Okumura se arrastou até a calçada, raspando os pés descalços no chão áspero buscando os olhos predatórios que estavam, uma vez mais, sorrindo gentis para si, como era de costume dele fazer. Eiji para de frente para ele com as mãos firmes no peito se certificando de que o coração não saltaria para fora, trêmulo. A pose rígida de Ash mantinha sua imagem equilibrada, mas os olhos jamais lhe mentiram.
- Você deixou seu cabelo crescer. - Ash observa estendendo a mão para tocar-lhe o rosto, mas hesita não lembrando ter pedido consentimento. Eiji, cheio de lágrimas nos olhos, avança desesperado pelo toque e, ao senti-lo em sua bochecha, os joelhos cedem e ele vai em prantos ao asfalto. Ash gostava daquele choro, era real, era cru, as lágrimas fluíam em abundância e a voz desafinada e raspada arrancava toda a dor e saudade mantidas indevidamente no peito do japonês. Ali Eiji chorava por dois. Lynx o puxa para cima sentindo as costas pesarem - o corpo não era o mesmo de dez anos atrás -. O garoto teve sua moeda engolida pela máquina pela demora em acionar os comandos.
A primeira coisa que Ash notou foi os pares de sapatos na entrada. O hotel onde ficara nos dias anteriores a sua chegada ao interior, lhe deram uma boa noção dos principais costumes e valores distintos do seu país e não seria ele a desrespeita-los. Após apoiar o rapaz no seu colchão, foi até a cozinha abrir portas e armários e descobrir da pior forma que a pressão da torneira era bem forte. Ele não mudara em nada, nem mesmo o sobretudo marrom.
- Aqui. - Lynx virou o copo nos lábios de Eiji, pois o tremor em suas mãos não o deixaria segurar nada apropriadamente.