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31 de Outubro de 2022 — 10h15 — 18ª DP

O cara sentou na minha frente e ficou um minuto em silêncio me encarando. Com certeza eu estava só o pó depois de todas as merdas que vi essa noite. Deu pra sentir a pena nos olhos dele e eu fiquei mais na merda com isso.

— Bárbara? Esse é o seu nome?
— Pois é, bebê...
— Os guardas te encontraram em uma situação... complicada... hoje cedo. Consegue me contar o que aconteceu?
— Pra você me tirar de maluca que nem eles? Que se foda! Quer saber o que aconteceu? Pergunta pra eles! Eu disse a verdade! — Levantei pronta para ir embora, mas não esperava pelo que ele ia me mostrar.
— Por acaso conhece esse homem?

Ele puxou da gaveta uma coisa assustadoramente familiar. Era um daqueles anúncios do disque denúncia, mas não um qualquer. Quando eu olhei uma parte de todo o inferno que vivi ontem à noite voltou a queimar na minha mente.

Aquele rosto. A barba. Os cabelos compridos.

PROCURADO

"CARA LÁ DE CIMA"

GABRIEL FONTES

RECOMPENSA R$2.000


— Onde conseguiu isso? — voltei imediatamente.
— É familiar?
— Vi um pôster desses ontem na festa...
— Bárbara, esse caso é de extrema importância e você pode ser a primeira testemunha substancial em meses de investigação. Preciso que conte exatamente tudo o que viu. Cada detalhe.
— Você já deve ter ouvido aquele ditado: se alguém te chama pra sair depois que você já tá pronto pra dormir, é a própria morte chamando. Eu nunca botei fé nessas coisas, só que...

Eram quase dez da noite, meu skin care tava em dia, meu baby doll tava on e o país tinha feito o L com força. Resumindo: a mãe não queria guerra com ninguém. Tava passando meu creme quando o Caíque veio todo eufórico mostrar a promo de una festa. A real é que ele tava saindo com um esquisitão que convidou ele pra esse rolê. Eu avisei que não era uma boa ideia sair aquela hora pra date  em balada com um cara ele mal conhecia, mas sei lá... Nessas horas a gente vê que gay é um bicho emocionado. Se bem que eu não julgo ele, porque a festa parecia ser bem legal. Era temática dos anos 2000, usaram o Lula na divulgação, até anunciaram a drag Helenão como host. Ele insistiu, eu falei que não ia e que se ele fosse era pra tomar cuidado.
Ele se arrumou super rápido e saiu de casa. Eu senti um aperto no peito no exato momento em que ele me mandou a foto da promo, porque ela não abria de jeito nenhum, aparecia como "arquivo corrompido". Aquela foi a última mensagem dele. Fiz uma pesquisa rápida no insta e não achei absolutamente nada sobre o evento, nem no perfil da Helenão, nem nos sites que geralmente vendem ingressos dessas festas. Eu comecei a ligar pra ele desesperadamente e não tive resposta. Daí eu olhei a hora e vi que era uma corrida contra o tempo.

— Corrida contra o tempo?
— Claro! Tinha coisa estranha ali e eu precisava impedir o Caíque de cair na cilada!
— Em nenhum momento passou na sua mente pedir a ajuda de alguma autoridade?
— Na moral, meu amigo! Eu confio mais no meu Mercúrio em Virgem do que em vocês, com todo respeito!
— Ah, é claro! Mas parece que ele não te ajudou tanto até aqui...
— Como não??? Eu vi aquela merda de divulgação uma única vez, por menos de cinco segundos e foi o suficiente pra gravar uma imagem mental. Memória fotográfica, bebê! Tinha um ponto de encontro.

No convite estava bem claro que o único jeito de entrar na festa era pegando o último vagão do último trem. Eu e Caíque, a gente divide um apartamento que fica perto de uma estação. Eu lembrei dessa informação às 21h50. O último trem chegava às 22h. Você entende que não tinha o que fazer? Eu simplesmente saí correndo de casa, de pijama e tudo. Eu não tive tempo de pedir ajuda, nem de chamar a polícia, nem de xingar os homens nojentos me cantando pelo caminho. Eu tinha dez minutos pra impedir a mona de entrar na merda do trem.

— Assumindo que você entrou no trem, consegue se lembrar de como chegou ao local? Onde era? Algum lugar por onde tenha passado?
— Meu senhor, EU LITERALMENTE CAÍ DENTRO DO VAGÃO!

Quando eu subi a estação, o trem tava chegando na plataforma então eu corri feito uma cadela pra tentar alcançar ele a tempo. Na hora do desespero eu só me joguei lá dentro antes da porta fechar. Qualquer pessoa em sã consciência que visse aquilo ia ficar assustada pra caralho. Só que ninguém viu. Tá, quase ninguém... A maioria ali dentro tava com os olhos vendados, menos uns dois caras parados do lado da porta. Eles perguntaram se eu tava indo pra festa e logo em seguida me deram uma venda também.

— E você botou?
— É claro! Eu sou maluca de não botar?
— Não tem nenhuma pista visual do trajeto?
— Não, senhor. Eu fiquei ali de olhos vendados com uma boa moça que sou, pois eu não queria morrer.  Tudo o que eu vi foi depois que cheguei no local.
— Como era? Como foi a chegada? Houve algum tipo de deslocamento? Se sim, consegue estimar por quanto tempo?
– Não teve deslocamento além do trem. Tudo o que teve foi a voz do maquinista dando boas vindas a tal da "Festa Lá Embaixo".
Depois disso veio o barulho das portas se abrindo. Os caras pediram pra gente tirar as vendas e sair. Quando eu saí não acreditei de primeira no que eu tava vendo. Era como se a gente estivesse numa estação de metrô abandonada. Primeiro eu pensei que fosse só uma ambientação muito bem feita, mas era impossível. O trem que levou a gente saiu dali como um trem normal. Tinha trilhos embaixo dele e tudo o que tem num lugar desses. Só que até então eu tava cagando pra isso, eu só queria achar meu amigo.
Tava muito cheio. Eu olhava de um lado pro outro procurando o Caíque, mas eu não encontrava. A música tocava, as pessoas se empolgavam dançando e nisso elas iam me arrastando. Ficou nessa palhaçada por umas três, quatro músicas, até a hora que eu saí da muvuca e fui pra um cantinho e olha que coincidência: eu finalmente achei a mona! Foi até meio difícil de reconhecer, ele parecia bem zoado das ideias, tava atrás de uma pilastra com um bofe quase arrancando o pescoço dele num chupão. Enfim... numa situação bem precária já.
— Seu amigo faz uso de drogas?
— Faz! Só que cara... aquilo ali não era só droga. Tinha realmente algo esquisito com ele e eu tive certeza disso logo depois.
— E nesse meio tempo? Nada de relevante?
— Eu fui falar com ele.
Falar entre aspas né, porque o som tava altíssimo. Eu tentei explicar pra ele que aquele rolê tava esquisito. Ele desconversou, tentou me fazer beber umas paradas muito suspeitas e eu não aceitei por motivos de que alguém tinha que ser a amiga sóbria. Mas tudo ali era muito, muito estranho. Não era só a música, sabe? Eu senti uma bad vibes naquele lugar, mas aos pouquinhos eu fui relaxando, ficando despreocupada, como se nada de errado estivesse acontecendo. E ali eu fiquei dançando linda e plena até a hora em que as luzes ficaram vermelhas.
Depois disso tudo ficou mais sinistro. O lugar parecia mais frio, a festa já não tava mais tão empolgante, tinha até uma ou outra pessoa discutindo. Também vi que tinha uma ou outra pessoa com um jeito muito bizarro. Sei lá, aquelas pessoas elas eram... meio pálidas, com um olhar meio de psicopata, sabe? Faziam uns movimentos bruscos do nada, como se estivesse bugando. Eu fiquei assustada de novo, mas aquilo não foi o auge do rolê.
Uma dessas pessoas era uma mina, eu nunca vou me esquecer de como ela era: o cabelo todo raspado, orelha com alargador, uma make bem pesada e ela tava usando um blusão largo como vestido. Começou a tocar uma antigona do Flo Rida e ela saiu gritando surtada pelo rolê, falando que aquela era a música dela. Nessa doideira a querida, simplesmente, desceu pra porra dos trilhos e eu fiquei tipo "meu pai amado! Sai daí, sua crackuda!". Nisso ela ficou dançando toda esquisitona, com uns movimentos bem sem nexo e eu achando que ela tava levando choque, só que não! Eu não sei como, mas ela tava ali super de boa. E qual foi o problema dessa situação? Meia dúzia de idiotas achando que aquilo era uma boa ideia: meu amigo foi um deles! Eu juro pra você... Foi muito rápido. Eles começaram a pular e eu mal tive tempo de chamar o Caíque. Um trem brotou do nada, como se o maquinista tivesse acelerando com a força do ódio que ele acumulou por vários anos. Ele passou por cima de todo mundo que tava ali embaixo.
— Inclusive do seu amigo?
Aquelas palavras foram como uma pedrada na minha cabeça. Dor instantânea. E pela primeira vez, eu percebi...
— Eu acho que sim...

As lágrimas desceram. Por um minuto achei que conseguiria controlar. No minuto seguinte eu estava soluçando e tentando desesperadamente fazer aquilo parar. Era como acordar de um pesadelo sufocante e perceber que tudo aquilo foi muito real. Eu mal conseguia pensar sem segurar minha cabeça com as minhas mãos.

— O que é isso no seu pulso?
O choro cessou. Meu sangue esfriou. Era uma perfeita marca de mordida manchando minha pele com pequenos pontos vermelhos. Até aquele momento eu não percebi o ardor.
—  Não me lembro de ter sido mordida...
— Vou ter que encaminhar você para o IML.

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⏰ Última atualização: Aug 18, 2023 ⏰

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