Prólogo

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Ela não consegue se lembrar de como chegou a esse lugar, nem mesmo o porque de estar aqui, ou mesmo por quanto tempo esteve nesse lugar, nesta sala, essa maldita sala.

Em algum momento ela deve ter pedido ajuda, ela fez? Ela não consegue se lembrar, mas tem a vaga sensação de que sim, apesar de ter a certeza de que ninguém a ajudou, ao invés disso, os poucos que passaram pela porta da sala, riam conforme os dias passavam e sua voz ficava cada vez mais fraca, seus olhos mais pesados, seu corpo mais fino e sujo, sua mente cada vez mais confusa, se deteriorando lentamente junto ao seu corpo.

Ela acha que pediu perdão, que implorou por misericórdia, prometeu entre gritos e sussurros secos e arranhados que dessa vez, dessa vez ela se comportaria.

Prometeu a quem? Bom, ela realmente não se lembra.

Mas, uma pequena voz no canto mais escuro e esquecido de sua mente, diz que é alguém que ela admirava, apesar de sua frieza e total rejeição, essa pequena voz ainda desejava que essa pessoa a olhasse com pelo menos um pouco de calor em seus olhos.

Porém, isso vinha da voz de uma pequena criança, uma criança tola que achava que merecia ser amada, que alguém realmente poderia amar algo tão sujo quanto ela; uma criança realmente, realmente tola.

Acreditando nas promessas e gentilezas vazias de um homem de luto, se permitindo de bom grato ser levada até sua prisão e, ao mais tardar, seu abatedouro.

Deseja comer? Ajoelhe e implore por restos, implore como a coisa suja que você é.

Está doente? Que cuide-se sozinha, caso morra ninguém sentirá falta.

Se machucou? Engula o choro, crianças irritantes como você, que só causam problemas para puramente chamar atenção merecem ser punidas.

Sede? Ora, você tem pernas e braços, procure água sozinha, caso não encontre, só prova sua inutilidade.

Te olharam de forma vergonhosa? Bom, não pode culpa-los, afinal, uma vadia suja sempre será uma vadia suja, mesmo que esteja coberta de jóias.

Coisas inúteis como você merecem morrer.

Ah sim, essa criança era realmente muito boba.

Uma criança inútil e tola, buscando o amor de pessoas que sequer se importam se ela está viva ou morta.

Por algum motivo, na cabeça da mulher de fios vermelhos isso parece realmente familiar, essa dor, essa raiva, essa solidão e anseio por ter sua existência e utilidade reconhecidas.

Claro, agora ela se lembra; ela é a maldita criança inútil.

Uma risada seca deixou os lábios da mulher, quase inaudível dado a sua condição de quase vegetação.

Penélope estava tão fraca que sequer conseguia se mover, vendo seu próprio corpo definhar em um canto de um dos quartos dos Eckart, na parte mais vazia da mansão, o duque e seus filhos nunca vêm a esse lugar, não há nenhuma necessidade de vir a esse lugar afinal, então porque se incomodar?

A mulher suspirou fracamente, sentindo o cheiro fétido ao seu redor, semanas sem banhos e as fezes, rastros de vômito e urina causando esse efeito.

Ela quase quis rir disso, relembrando do rosto de uma bela mulher, estava vago em sua mente, mas ela ainda conseguia se lembrar de seus olhos verdes, mais brilhante que qualquer jóia que já viu, até mesmo a própria rainha sentiria inveja se visse a beleza de sua mãe.

Essa mulher tão bela, gentil e inteligente, morreu em um beco de fome, tão magra e tão fraca quanto a Penélope atual.

Uma mulher tão vil e imunda, morrendo do jeito que merecia.

Penélope riria de sua miséria se tivesse forças para isso.

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Uma empregada encontrou o corpo, sentindo o cheiro terrível que vinha daquela sala abandonada na parte mais isolada da casa Eckart.

Pobre Alice, em sua primeira semana contratada, encontra o cadáver fétido da princesa dos Eckart, a pobrezinha quase morre de ataque cardíaco aos dezessete anos.

Não demorou para a notícia se espalhar pelo ducado, chegando aos ouvidos do duque Eckart e logo ao resto da nobreza.

O cadáver encontrado já em estado de decomposição parecia deplorável, irreconhecível para qualquer um que visse, até mesmo para o duque.

Ninguém poderia relacionar aquela coisa a brilhante e arrogante princesa de cabelo magenta.

Vendo aquele corpo, já sobrevoado por moscas, com larvas comendo sua carne podre, os excrementos e coisas quebradas pela sala, sem sinal de cabelo brilhante, seus olhos suplicantes, seu sorriso temeroso e sua voz ruidosa, o grande duque Eckart, conhecido como alguém inabalável, caiu em frente o cadáver de sua filha caçula e chorou, como nunca antes.

Reynold Eckart, conhecido por todos na mansão por sua implicância para com sua irmã mais nova, após sua morte se recusou a sair de seu quarto, observando os lindos vestidos e jóias que ela colecionava, seus livros favoritos, escondidos embaixo da cama, pequenos desenhos e cartas que ela nunca teve coragem de entregar a nenhum deles, naquele quarto o homem de cabelo rosado chorou, como nunca antes.

Derick Eckart, após uma investigação foi acusado de assassinato por negligência, sentenciado a prisão perpétua pelo voto da nobreza, tendo o apoio do juiz que, apesar de sua amizade com os Eckart, nunca poderia tolerar tamanha barbaridade. Naquela cela escura e silenciosa, ele se lembrou do dia em passou por aquela porta, de ter ouvido ela gritar e implorar, ele se lembra de rir e virar as costas, deixando-a para morrer, e então, se lembrando do sorriso brilhante de uma pequena Penélope o chamando carinhosamente de "irmão", então ele chorou, como nunca antes.

Ivone Eckart, com um pai mentalmente abalado, um irmão preso e o outro que sequer comia corretamente, não teve dificuldade para dominar o ducado e eventualmente o império.

Ela não pode deixar de sorrir ao ver como esses humanos estúpidos causaram sua própria ruína, rindo descontroladamente da tolice humana.

Então uma luz de mana explodiu, o feitiço do mago ativado e a alma de uma criança condenada a um ciclo eterno, destinada a cumprir o desejo egoísta daqueles que a mataram e machucaram, presa pelas correntes do tempo.

Uma prisioneira temporal.

Notas: Percebi recentemente que essa história precisava de um prólogo, então eu fiz um, baseado na primeira morte dela que foi brevemente mencionada. Escolhi a imagem do pássaro pra representar a Penélope, uma metáfora, um pássaro com penas bonitas, mas apenas isso, algo aprisionado que na visão de quem está fora da gaiola só serve para parecer belo.

Prisioneira TemporalOnde histórias criam vida. Descubra agora