As águas se moviam em um ritmo antes nunca visto pelos humanos da praia, eles observavam enquanto a maré tornava suas peles retintas ainda mais negras e camufladas pela sombra do enorme volume d'água. Todos os poucos peixes pescados haviam escapado pelo buraco na rede, feito pela movimentação turbulenta da água. Era sinal pra voltar pra dentro, guardar a rede e deixar a pesca de lado.
Um tanto desapontados, correram para suas casas, arranjadas da maneira que podiam, cientes de que a fome faria parte de seu cardápio por mais uma noite, mas ali ainda havia muita felicidade guardada para sustentar seus estômagos. Eram tantos os dias que nem se deram ao trabalho de contabilidade, apenas esperavam, dia após dias, até que lhes fossem presenteado algum alimento. Mantinham seu respeito pela natureza de maneira tão intrínseca em suas vidas, que compreendiam a escolha do mar em cessar os peixes, vez ou outra, se dispunham a caçar frutos nas copas das árvores. Na maioria das ocasiões, se punham apenas a sentar em roda em volta de uma chama para trocar histórias, ensinamentos e assuntos, se alimentando da companhia uns dos outros.
Os mais novos fingiam prestar atenção enquanto trançavam cestas, ensinados pelas velhas artesãs do vilarejo, mas sua atenção era verdadeiramente rendida aos que se demoravam em contar histórias altamente questionáveis.
Eram poucas as ocasiões que as trançadeiras se dispunham a também se meter a contação de histórias, mas estas eram consideradas as melhores, traziam através de seu artesanato, lendas e contos do passado, falavam da formação do povoado e de como o mar os havia escolhido e lhes ensinado a pescar, fixando ali, naquelas terras na beira do oceano, seus casebres humildes e satisfatórios.
Numa noite sem luar, se encontravam a trançar enquanto alguns achados do mar se coziam na pequena chama, rendendo a única iluminação que precisavam. Não saberiam dizer em que altura do tempo estavam, viviam os dias com leveza e o deixavam passar sem que lhes pesasse os ombros, não havia então, urgência alguma. O vento tinha cheiro de mar, as ondas batiam em sua canção natural, mas não fazia frio, poucas eram as vezes em que fazia frio, até mesmo nos dias das ondas grandes em que o mar pedia os peixes de volta para si.
O assunto na fogueira se estendera e os mais jovens se puseram a deliberar avidamente, todos famintos de que suas histórias fossem reconhecidas verdadeiras pelos mais velhos que lhes prestavam atenção, mas nunca podaram seus relatos carregados de imaginação, sabiam que, mais velhos, suas narrativas se tornariam mais reais e relevantes para serem transmitidas aos mais jovens.
— Mulher com corpo de peixe eu já vi. — Comentou baixo uma das mais velhas senhoras que habitava o vilarejo, a mesma não costumava se meter na contação de história, passava mais tempo em silêncio, ensinando de olhar atento, sendo assim, sua voz, poucas vezes, fora reverberada nos momentos da fogueira. — Ela gostava de correr com os elefantes, montava seus corpos enormes como se fossem animais pequenos.
Havia um brilho subjetivo em seus olhos que não se levantavam da cesta que trançava, sua pele negra era ainda mais escura na ausência de luar, os olhos já traziam incontáveis rugas, mas brilhavam como fogo pela memória que havia resgatado.
— Ela aparecia quando o mar se levantava pra terra, acho que ela mesma o fazia pra espantar a gente e deixar os peixes pra lá. — Mais um pedaço de palha dançava em seus dedos enquanto as palavras surgiam através de seus lábios — Depois, o corpo peixe virava perna e ela corria atrás dos elefantes que brincavam co'ela igual os pequenos que correm pra não aprender cesta…
— Como ela era, Baba? — Se atreveu a perguntar, uma das jovens.
— Era diferente da nossa gente, nadava nua pela água, mas no mar não bate Sol igual aqui, criança. Tinha a pele mais clara que a da nossa gente. — Suas justificativas faziam tanto sentido que simplesmente roubava questionamentos de todos, apenas permaneciam em silêncio. — Quando virava gente, vestia roupa colorida igual nosso povo e saia correndo com a cabeleira cheia de cachos louros. Mas não dava pra ver muito, logo dava gargalhada e corria levantando areia atrás dos elefantes.
— Como tu sabe disso se ela corria tanto? — Mais um atrevido pôs a história à prova.
— Um dia ela não correu atrás de elefante. — Levou o cesto ao fogo a fim de refinar as arestas da palha. — Ficou curiosa com a nossa gente e veio atrás de assunto. — Mostrou a cesta que fazia, agora pronta, apontando os desenhos que a palha enrolada havia formado. — Ensinou a nossa gente a carregar peixe com cestas em formato de escama, igual as pernas que tinha na água. — Pôs o labor terminado de lado e passou a alimentar o fogo. — Ensinou a respeitar a água salgada, a água doce e a mata. Acho que não aprendeu muito com o nosso povo, porque nunca voltou. — Comentou já se levantando para se recolher. — Mas vez ou outra, dá de ver a mulher peixe correndo na areia atrás de elefante.
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Água de Sal
Short StoryO vento salgado bateu no teu pé que balançava fazendo cócegas no chão, que te devolvia em pequenos grãos de areia, alheios demais ao tamanho dos animais que você tentava alcançar. Fora d'água, correndo atrás de elefantes...