Uma Indicação

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Não tive muitas oportunidades pra sentir raiva ao longo da vida. Em certas solidões da minha infância, o alvo sol menor emergia dum muro de tijolos negros como uma introdução capciosa da inflamação alizarina do sol maior, que o seguia levemente a sua esquerda, dentro de pouquíssimas horas. Ao meu redor o mundo girava sem que eu fosse notado. Mudava incessantemente, e eu, indiferente, só podia olhar. Como as páginas de um livro que se viram violentamente depois da batida do vento que invade a janela. Eu poderia fazê-las parar, mas onde eu pararia? Tentaria recuperar tudo o que se passou? No distante ano de 1256 eu ainda não sabia a resposta. E nunca soube nem mesmo de qual ventre ou terra eu vim, mas não creio que esses conhecimentos me cativariam em outros caminhos.
Havia uma andorinha que sempre me visitava nas madrugadas. Às vezes pela janela, às vezes por baixo da porta, às vezes pelos buracos do teto de madeira. Pousava em minhas mãozinhas crespas e brincava entre os meus dedos, enquanto os outros garotos do abrigo dormiam. Eles diziam que ela não existia, que andorinhas andavam em bando, que eu estava mentindo. Apanhei bastante deles por isso, e em algumas vezes, ao me levantar de uma sequência de pontapés, estava lá me olhando, de algum canto escuro. Para evitar mais ferimentos eu parei de falar dela. E dali a frente, durante um tempo muito bom, eu consegui até esquecer que estava triste.
Nos meus aniversários ela sempre dançava entorno da vela, bicava a cabeça das outras crianças e se escondia depois que acordavam confusas. Fazia isso até eu parar de chorar. No meu primeiro dia como adolescente eu estava ansioso por sua visita. Queria saber se, como as freiras e as outras crianças, me teria como alguém levemente mais autônomo naquela nova fase de minha vida. Com algum medo dos outonas galhos noturnos que se cruzavam atrás da vidraça da minha janela, eu a esperei até que a vela sobre a mesa ao centro dormitório se apagasse. Depois que percebi que ela não apareceria, eu não consegui mais chorar. Acabei conseguindo a percepção, no passar dos anos, de que os outros garotos estavam certos. Ela nunca havia existido, se não como a representação dos anseios de uma criança perdida na companhia de desejos fantásticos que se recusavam a ser dissipados pela presença irremediável da solidão. Solidão que hoje melhor aceito e entendo. Fora da prisão infantil do ego, encontramos mais satisfação nas respostas que provocamos do mundo. Mas as que consegui foram insípidas ou mesmo dolorosas, isso devido a todas as minhas limitações herdadas, então me frustrei. E me voltei a velha dinâmica de buscar as respostas através de mim e não dos outros, porém sem o pássaro. Difícil não considerar ser alguém diferente enquanto se carrega sacos de cereal pra sobreviver.
Trabalhos como esse iam se tornando comuns na vila isolada entre duas aldeias onde eu vivi da infância a adolescência. Era natural que fosse assim a uns duzentos anos antes, mas não naquele tempo, um tempo de descobertas chocantes da engenharia à regeneração. Conheci um cultivador de cevada que perdeu uma mão depois de receber uns chacoalhões de um urso pardo que cruzou seu caminho de volta pra casa. Assim que o encontraram, ele foi levado as pressas por um transportador... uma máquina para locomoção coletiva. Ela possui uma haste de controle e um pedal de giro energizante para o condutor, que se senta no banco individual da frente. Uma roda na dianteira e duas na traseira, encaixadas numa plataforma triangular onde cabem... Bem, os trabalhadores não costumam seguir muito bem essa regra. Muitas vezes vão até sobre o teto. Mas o certo é viajarem, no máximo, três pessoas… Vocês tem algo assim? É uma loucura. Basta pedalar suavemente, mas não me pergunte como funciona internamente. Ah, o agricultor ficou bem, enfim, sem infecção, e colocaram a mão de volta no lugar. Não se move mais, mas está lá. O regenerador que realizou o procedimento recebeu cem sacos de cevada. Mas sei que jogou tudo fora, porque olhava com nojo para os sacos enquanto eu e meus colegas descarregávamos no seu armazém.
— Fui como vocês, garotos. Sem passado, sem futuro, vivendo num lugar superado por quase todas as civilizações. Mas escolhi tentar a sorte em uma das aldeias que nos cercam, Aldeia dos Migrantes. Mas há muitas oportunidades, tanto para o leste quanto para o oeste. Hoje eu volto ao vilarejo, desse largo leste montanhoso, não só pra ajudar com o que aprendi, mas também pra orientar vocês jovens.
— Quais oportunidades? — Pergunto.
— De serem alguém, ilustre testudo desconhecido.
— Somos mais numerosos que a população de Mão William de Carvalho e a Aldeia dos Migrantes juntos. Saem daqui todos os que de fato fazem esses lugares funcionarem, enquanto isso, aqui quase nada funciona para baixo-filiados.
— É como as coisas são, garoto. Eles tem o que vocês precisam, que são bons empregos. Vou pedir para que, antes de saírem, peguem um papel com a minha governanta e escrevam nele seus nomes junto com suas habilidades e seus endereços. Se for possível para mim, farei ótimas recomendações. E aos que não dominam a arte de escrever, sem dúvida por considerá-la inconspícua, peço que apenas saiam. O mundo é como é. Vocês podem apenas chorar ou fazer o que estiver ao alcance para construírem um nome que dará crédito a suas famílias.
Sempre vivi como se estivesse me preparando pra algo a mais. Algo desconhecido. E a alfabetização seria algo indispensável, não importando para o que fosse, mesmo sendo algo que nunca tivesse mostrado serventia para um carregador humano. Mas eu nem mesmo valorizava a utilidade de um carregador. Sim. Talvez conhecimentos inúteis sempre tenha sido companhias melhores que as pessoas pra mim por pura questão de identificação. E na folha da governanta, como em quase todas as minhas noites, eu estava sozinho. Nelas considerei diversas questões aparentemente não muito relevantes: existem outros sóis em outro lugar? Porque os nossos olhos tem cores diferentes? Qual a profissão mais antiga do Império do Novo Horizonte, no centro-oeste campestre de Braca? Pra última pergunta eu encontrei a resposta, ao menos. Não sei como resistiu às revoluções tecnológicas dos últimos anos, mas tive que havia necessidades artesanais que não iriam embora tão cedo.
“Caio, padeiro”

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