DEPOIS DA ENCHENTE

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O carro não estava mais onde eu tinha deixado. A casa eu achei dois quarteirões para baixo. O gato eu não vi mais. Já não era a primeira vez. Há 10 anos já tinha perdido tudo embaixo da lama que soterrou a cidade onde eu morava. Eu só conseguia pensar qual era a do grande roteirista que resolveu enfeitiçar minha vida novamente.

A polícia informou que estavam reunindo os sobreviventes em uma escola na Cidade Alta. Voluntários estavam distribuindo roupas e cobertores para passarmos a noite no ginásio e a Liga das Crocheteiras estava promovendo um sopão de feijão com macarrão do lado de fora. Ao fim da fila estava um rapaz de camiseta amarela com um fone de ouvido com quem conversei o resto da noite.

Descobrimos que tínhamos muito em comum. Os dois crescemos nos comportando como a criança perfeita, para não sermos preteridos no amor dos familiares ou dos amigos, tentando compensar de alguma forma pela nossa viadagem - até que ela gritou para fora do armário. Os dois tivemos super-mães que nos salvavam de toda a encrenca que vem junto com ser gay. Os dois vivemos uma adolescência tardia, porque a nossa havia sido roubada enquanto fingíamos ser algo que não éramos para a sociedade. Transbordamos, de certa forma.

Mas qual não foi a minha surpresa ao descobrir que ele também passara por duas enchentes - na primeira ele perdeu a família. Tínhamos os dois cicatrizes nas mãos de nos furarmos nos pregos dos escombros. Como um eco do desastre veio a tentativa de suicídio - ele com uma corda, eu com Tylenol. Depois veio a aceitação, e junto com ela a tatuagem de ponto e vírgula que carregamos - eu no pulso, ele no peito.

De cima do morro ao lado a escola, olhávamos a cidade submersa com o vento nos afagando. Ali, nos abraçamos. Como podia ser que no meio de um desastre eu tenha encontrado alguém assim? Capazes de nos respeitar melhor porque tínhamos as mesmas feridas e as mesmas questões, também tínhamos tudo o que era necessário em termos de personalidade para nos reconstruirmos após este desastre. Éramos os sobreviventes da sobrevivência, por assim dizer. Transbordamos três vezes.

DEPOIS DA ENCHENTEWhere stories live. Discover now