- Atenção aldeões! Reúno tantos de vocês nessa praça hoje para informar que o Representante se encontra debilitado, então não poderá fazer comunicados por enquanto. Ele me pede para dizer que está bem, e que logo estará de volta. Por hora, eu, General Pedro Flores, ficarei responsável pelos comunicados e outras funções mais desgastantes. Mas o Representante, o senhor Luís, devo enfatizar, ainda está ativo no cargo. Ele inclusive afirma que os recentes acontecimentos serão brevemente superados. Há planos. A guerra tem custado muitos recursos para o império e por consequência para as aldeias, mas contamos com o necessário para eliminarmos nosso recente adversário, que se colocou no caminho de nossa água. Até retirarmos a árvore e o nosso investigador natural apresentar novas análises da situação, todos vocês estão proibidos de consumir a água da rio do norte. Pode estar contaminada do mesmo mal que vitimou nosso querido honrado padre. Continuaremos a usar a água importada da capital para todos os fins, até que a situação se resolva. Em último lugar, mas não menos importante, algumas ações preventivas deveram ser tomadas para a segurança de todos. Adiantamos aqui que faremos um controle maior dos visitantes e trabalhadores que chegarem a aldeia, e outras medidas deveram ser tomadas. Algumas talvez sem aviso prévio. Mas pedimos a compreensão de todos. Folhetos com essa mensagem deram espalhado pela aldeia, mas mesmo assim pedimos que nos ajudem a espalhar essas notícias. O Representante Luís e nós desejamos um ótimo dia a todos.
Nenhum dos dias passados desde a aparição foi suficiente para que eu esquecesse minimamente o ocorrido. As imagens se repetiam na minha mente. Então eu fingi, tão mal quanto os que não enlouqueceram permanente, mas fingi. Compusemos todos uma realidade mais tangível, um chão mais sólido, e com isso a aldeia pôde voltar a funcionar. Açougues voltaram a exibir peças de cordeiro e de coelho, cavalos transitavam com fardos de feno, ferreiros faziam o tilintar agudo correr pelas ruas novamente. Com a padaria do senhor Nelson não foi diferente. Olívia atendia os clientes com alguma dose reduzida da mesma simpatia, mas não os olhava nos olhos. Por vezes começava e concluía vendas de forma até monossilábica. Se dava frases, eram curtas, interrompidas antes do ressentimento moldar o impulso da voz. Ouvia os sussurros, lia os olhares cruzados. Falavam dela. Temente de sinais vazios? Assecla de um líder suicida? Talvez não todos acreditassem nessa versão dos fatos, mas era a versão que melhor se alinhava a posição oficial do Império, por isso era bastante popular.
Os soldados passaram a reprimir quem ouvissem falando do ocorrido, sem nenhum impulso muito dramático. Esse guardaram para os trabalhadores que vinham da vila, revirando bolsas e confiscando todo tipo de erva, pedra ou objeto artesanal que considerassem suspeito. Foi iniciado um controle migratório severo, com longas listas de registro que eram conferidas por soldados postos entre o portão de um muro ameaçador e grandes filas. Só trabalhadores e convidados especiais da vila eram permitidos. Os trabalhadores precisavam ter o nome na lista e apresentar a marca, que era uma tatuagem de um martelo dentro de um círculo, localizada pouco abaixo do pulso. Era feita com uma tinta incomum e exclusiva do império, que brilhava no escuro. Um verde fluorescente da cor exata de um vagalume. No entanto, os convidados especiais da aldeia não vinham da fila grossa que sumia no horizonte de uma estrada empoeirada, mas sim através de um túnel subterrâneo, acompanhados por soldados fortemente armados. As entradas dos convidados eram disponibilizadas por alguns militares de alta patente, pelo Representante e outros funcionários mais relevantes do império. Mas também poderiam ser compradas por altos preços.
A instalação do encanamento foi interrompida, pois a passagem foi fechada junto a árvore azul. Que não podia ser vista. Apenas notava-se um gás luminoso que ela evolava a noite. Olivia subia no teto da construção mais alta e mais próxima sempre que podia. Observava o ar fantasmagórico que as paredes, calçadas e janelas ganhavam isoladas com a árvore azul. De certo era uma das pouquíssimas pessoas que esperavam que o padre Amilton voltasse de dentro da árvore, e dentre elas a que mais torcia.
Seus familiares contavam com certa distinção na região, mas ela parecia ter aberto mão de qualquer honraria para estar junta de famintos e doentes. Sentia o peso de alguma missão e por ela abriria mão de qualquer prestígio. "Não esperaremos por nada. Sinais ou ordens, necessitados ou líderes. Nada. Pois se há silencioso, o sinal ou a ordem, o gemido ou a condução já foram dados a tempos, mas sempre poderemos reencontra-los no ímpeto mais generoso do nosso espírito", oração mais importante da igreja católica, que ela repita nas reuniões e que naquele momento não fazia sentido. Acredito que talvez, inconsequente, sentisse que qualquer iniciativa que tomasse - sendo que ela não fazia ideia de qual - poderia figurar como um obstáculo futuro ao destino prometido pelo padre, também assim uma desastrosa demonstração de falta de fé. Decidiu que sobre a árvore não faria nada. Esperaria o tempo que fosse pelas respostas juradas, e se concentraria na situação dos trabalhadores migrantes. Conversando com administradores imperiais e fazendo pressão para que as condições de transporte fossem melhoradas. E tinha poder pra isso. Era a nova líder da igreja, embora não reconhecida pela Cúpula das Nuvens, que, segundo informes difusos, ainda deliberação. Mas era uma sucessão natural e inquestionável, pois todos sabiam do favoritismo do padre Amilton.
"Você é bem vindo na nossa luta, se quiser", ela me dizia, e de fato eu queria. Apensar de não ter sido marcado, dentre outros males, por ser um morador da aldeia, me via com algum dever para com os moradores da vila. Mas não sabia como poderia ajudar. Se a líder de um grupo relevante sofria para fracassar, o que eu poderia conseguir? Me julgava irrelevante naquele conflito, então me mantive afastado tanto quanto pude, mas sabia, de alguma forma, que em algum momento eu seria levado a alguma posição mais ativa dentro do conflito. Havia sempre uma janela quebrada cada vez mais próxima da minha, e as perguntas iam se tornando mais impositivas: "o que você acha do que eles fizeram?", "vai apoiar caso ocorra uma paralisação dos trabalhadores?". Eu desconversava. Apressava o passo. Conferia a minha bolsa. Tinha alguém me olhando? Voltava a me apressar. Tropeçava, mas não caia e alguns me olhavam, mas acreditava que alguém dentre deles já me observava antes.
- Não tem ninguém te seguindo! - Disse Olivia, enquanto espancávamos uma massa. - Garanto. Se existisse algum movimento contra isentos eu saberia. As discussões são outras. Como sabe, o representante Luís continua em "repouso".
- Por que o general iria esconder informações sobre o estado de saúde do representante?
- Por poder político. Não acha estranho que a aldeia esteja sendo regida de forma mais dura? Como um quartel? Hoje nosso grupo vai conversar com ele. Tentar conseguir melhores condições de transporte para os trabalhadores, mas vai ser difícil. O representante desconfia muito dos que vem de vila, e o império não vai intervir. A capital está muito comprometida com a guerra contra os assinalados, apesar de estarmos vencendo.
- Você ficou bastante importante.
- Preferia não ter ficado.
- Acha que ele consegue voltar?
- As convicções dele são as minhas. Cheg... Vou até o fim por elas. Sempre nos disse que algum dia teríamos que tomar uma decisão que mudaria tudo pra muita gente. Por isso procuramos levar uma vida desapegada, sem grandes posses, para que possamos tomar essa decisão com pureza no coração. Sem medo de perder nada.
- Mas e se ele não voltar?
- Você ainda não entendeu que eu não posso considerar essa possibilidade?! Eu nem mesmo existo nela.
No fim daquele dia eu caminhei menos desconfiando para o dormitório. Estava mais atento na conversa que tivera. Eu não refletia sobre o que Olivia me disse. Não conseguia. As frases simplesmente corriam sem destino na minha cabeça. O estalajadeiro me disse para avisar ao senhor Nelson que o aluguel iria aumentar. Perguntei a ele se alguém já tinha perguntado de mim, se eu morava ali ou algo assim, e ele disse que não. Me enfiei pelos corredores escuro e as frases voltaram a correr. Comecei a me perguntar do peso delas para mim, quanto eu seria afetado pelo assunto delas, e nem percebi que já havia aberto a porta. Decidi então fecha-la, mas ela já estava fechada. Pensei então em me lavar, e percebi que já estava nu, dentro da minha banheira. Não estava assustado, pois a cada cenário superado era como ter me libertado das incertezas angustiantes dum sonho, e de outro, e de outro. Comecei a notar, nas águas turvas a luz de, velas, um borrão rosado e branco ao fundo da água. E dele emergiu Mima, vagarosamente. A tive sentada a minha frente e fixada calmamente nos meus olhos; os cabelos, a pele e as vestes alvas totalmente secos. E eu estava acordando de mais um sonho para aquela realidade, que se fazia estranhamente banal por uma familiaridade incompreensível, sem origem aparente; que talvez tenha tornado assustadoramente impertinente qualquer sublevação. Uma visão de páginas dum livro sendo viradas pelo vento surgiu em flashes, e nela os pensamentos de Mima acompanhavam calmamente o som das folhas. Pensamentos que respondiam os meus antes que eles ganhassem forma frasal.
- Porque eu não estou te agredindo, encare assim... Bom, vou precisar pegar algo emprestado de você. Acho que a essa altura você já sabe o que é... Muito, mas só no início... Nenhuma. Nada disso é por você... Isso não é simples de explicar, mas imagine que quem você é contribuiu para a criação de um estado cósmico que depende de você para cumprir seu destino. Numa escala insignificante para muitas artes, mas não para a nossa, porque pode nos custar tudo... Infelizmente você não tem permissão para se inclinar sobre essa questão... Nós já começamos.
Os olhos da Mima deixaram os meus e se aventuram numa direção completamente nova. Não era cima, não era baixo. Não era esquerda, não era direita. Chegar ao interesse da sua visão exigia dos olhos um movimento tão simples quanto impossível. Ela ergueu seu braço esquerdo ao alto, tão rapidamente que a ideia de movimento não poderia contemplar seu ato. Ele ficou ali por alguns segundos, contra a luz duma vela, e seguidamente desceu, com a mesma fúria, e segurou seu antebraço direito e começou a puxa-lo em variadas direções até que alguns estamos fossem ouvidos. Ossos se quebrando, veias e músculos arrebentando e, com um cotovelo destroçado e um puxam ao mesmo alto, um desmembramento enfim. Seu sangue hediondo enfaixou diagonalmente meu peito juvenil e meu rosto ainda cativado por ideias loucamente abrangentes de banalidade. Ela abaixou o membro arrancado e o repousou sobre a água empoeirada, e, enquanto ele afundava, abriu uma boca, que cortava a bochecha, chegava a entrada da orelha e descia até a base do pescoço, para morder e arrancar seu membro carrasco com seus dentes agulhados. Mais um pedaço imergindo e ela começou a girar o pescoço repetidas vezes para a direita, com ferocidade. Depois da quebra do pescoço a cabeça caiu por um momento breve, mas se levantou em seguida e continuou o movimento, se articulando diferentemente, mas com o mesmo vigor, ate que um giro completo desunisse sua cabeça do tronco, a fazendo cair estrondosamente na água ensanguentada. O tronco escorregou lentamente e também foi engolido por ela.
Com seu corpo em pedaços totalmente submerso, a água vermelha foi esquentando, depois se agitando, depois borbulhando, e como aranhas suas mãos saltaram da água e me pegaram, e junto a visões do romper duma represa, o horror me inundou, irrigou meu cérebro, me permitindo lutar contra o indizível. E enquanto as mãos da assinalada abriam as minhas velhas, diversas e espalhadas cicatrizes, para enfiar nelas os pedaços do seu corpo, eu gritei. Não de dor exclusivamente. Gritei porque pela primeira vez eu não sabia o que aconteceria comigo quando a dor acabasse. Quando apanhava ou quando caia ou quando fugia ou quando adoecia eu nem sempre sabia em exato da pior sorte que me encontraria, mas todas essas possibilidades iriam depois ser contidas por explicações que me dariam, talvez muito insignificante, mas ainda assim alguma forma de sentido sobre o qual poderia agir. Eu aí me tornando menos meu a cada joelho, fígado e perna que entravam nos cortes reabertos no meu abdômen, na minha coxa, no meu braço... Eu me debati. Tentei segurar os pedaços, mas toda aquela carne fresca era muito escorregadia. E no fim suas vestes brancas e secas me envolveram e me puxaram por inteiro para dentro de uma das minhas cicatriz rasgadas. A dor não parou em mim, mas simplesmente fugiu, e tudo ao meu redor era escuro. Minhas pernas se moveram, me levantaram e meu corpo saiu da banheira, e no espelho eu o via caminhando, estando amarrado e amordaçado dentro dos meus olhos.
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Aldeia dos Migrantes
FantasyNo ano de 1256, um jovem consegue um emprego de padeiro e se muda para uma aldeia afim de melhorar de vida. Mas uma visitante inesperada começa a causar problemas no local.