Entre Corvos e Borboletas

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31/10/1980

Finalmente encontrei uma utilidade para essa agenda que comprei junto de meus materiais escolares. Enquanto meu pai dirigia o carro para algum lugar o qual nele nem minha mãe decidiram revelar para mim e para minha irmã mais nova, eu usava essa agenda justamente para anotar o decorrer da viagem, como uma espécie de diário de bordo, que eu havia visto alguns dias atrás em uma aula de história. Eles não revelaram o lugar, querendo nos deixar curiosos com essa surpresa. A única coisa que disseram, era que seria a melhor férias que iríamos ter nas nossas vidas.
Bem, eu realmente esperava que sim pois a partir do momento em que pegamos uma estrada diferente e que agora era praticamente deserta, tinha minhas dúvidas do quanto ia demorar para chegarmos. E foi quando o carro parou. Meu pai tentou dar a liga mas nada funcionou.
"Já chegamos ?" Perguntou minha irmã mais nova. Nesse momento meu pai saiu do carro e abriu o capô. Não consegui reparar muito bem pelo meu canto, mas pude notar que algumas borboletas brancas saíram voando dali de dentro.
"Ainda não, filha, o papai só tá resolvendo ... Um pequeno problema." Minha mãe a respondeu.
Eu abri a porta do carro e andei até a frente parando ao lado do meu pai.
"O que aconteceu ?" Perguntei a ele, querendo ajudar de alguma forma.
"Aparentemente está tudo perfeito com o carro, não vejo o que possa estar causando esse defeito." Ele me responde, mexendo em algumas peças.
"A gente pode ver se alguém naquele lugar pode nos ajudar." Disse a ele.
"Que lugar afinal ? Estamos a vários quilômetros da cidade mais próxima." Meu pai interveio.
"Aquele." E apontei na direção.
Meus dedos indicavam uma fazenda a alguns quilômetros dali, saindo da estrada. Pareciam estar ali a bastante tempo, facilmente colocando décadas de idade ou até mais. Olhei em meu relógio e já eram umas cinco da tarde, logo iria anoitecer e aquele lugar parecia ser a única opção viável. Meu pai tentou algo com o celular dele, mas estava sem sinal algum.
"Bem, teremos que levar o carro junto. Ao menos não é tão longe." Ele disse, vendo que não tinha outro jeito.
E então, todos saíram do carro e, com o freio de mão destravado, começaram a empurrar o automóvel vermelho dando uma curva com ele e enfim indo na direção daquela velha fazenda.
Conforme nos aproximamos, o céu começava a adquirir tons de vermelho e laranja indicando que o pôr do sol estava chegando. Paramos o carro próximo de um trator que havia perto da entrada da cabana da fazenda e observamos ao nosso redor. Não havia ninguém ali. Ao menos era isso que pensamos.
Deixei minhas coisas dentro do carro, apenas meu pai pegou uma mochila a carregando nas costas e minha irmã sua pelúcia de um gato rosa, Pangarap. Nunca soubemos de onde ela tirou esse nome, mas desde que o ganhou, ela passou a chamar ele assim. Meu pai foi até a casa batendo em sua porta. Nenhuma resposta.
Observando ao redor, reparei em algo incomum. Havia uma igreja depois do milharal ao lado da fazenda, mas o mais estranho era o espantalho em meio ao milho e nele, havia um corvo negro parado ali. Quando meus olhos o encontraram, o mesmo virou seus olhos escuros como a noite na minha direção, como se me encarasse. Esse contato se manteve por alguns segundos antes que eu desviasse sentindo algo estranho e, quando olhei para o local novamente, o corvo tinha desaparecido.
O sol no céu agora já estava no fim, sendo possível já ver a lua nascendo em seu lado oposto. Meus pais estavam focados em procurar alguém naquela residência, dando a volta ao redor dela na procura de um sinal de vida. Eu estava tão distraído com o corvo que, quando ele sumiu, percebi que minha irmã não estava mais perto de nós. Olhei ao redor, e foi quando a vi.
Bem mais à frente, ela estava saltitando atrás de uma borboleta branca, a qual ela seguia inocentemente tentando pegar aquele inseto.
"Pai..." Minha voz saiu alta, com o olhar fixo naquela cena.
"O que..." Sua voz me tirou daquele transe, e quando olhei para ele, o mesmo estava encarando ela, logo após, sua atenção voltou a mim.
Nosso olhar se encontrou. Nenhuma palavra foi necessária.
Tornamos nossa atenção de volta para ela, desta vez andando em sua direção. A cada passo que dávamos, aumentamos nossa velocidade. A cada passo, sentia meu coração bater mais rápido, como se sentisse um perigo prestes a chegar. Nossa mãe vinha logo atrás, por conta de seu salto alto.
Tentei chamar a atenção dela, mas a mesma parecia hipnotizada por aquela borboleta, a seguindo com um sorriso no rosto saltitante, balançando seu gato de pelúcia de um lado para o outro. Ela continuou a seguir até passar pelas portas de uma espécie de celeiro que tinha ali.
"Marina!!!" Meu pai gritou enfim, numa última tentativa de chamar a atenção dela.
No momento em que o grito fora entoado, tivemos a clara certeza de que ela ouviu, mas assim que seus cabelos loiros voaram pelo ar conforme virava seu corpo para trás, era como se o bater das asas daquela borboleta branca fossem o suficiente para que as portas do celeiro se fechassem com um estrondo. A última coisa que eu vi fora o brilho dos olhos castanhos dela na direção dos meus, antes que fossemos bloqueados.
Segundos se passaram, a noite havia chegado. Eu cheguei junto de meu pai no celeiro. Tentamos abrir a porta mas era como se ela tivesse trancada. Via meu pai esmurrar a porta com socos e chutes, mas por mais antiga que fosse, parecia que a madeira tinha adquirido resistência com o tempo. Assim que minha mãe nos alcançou, nós só ouvimos uma coisa antes de trocar uma palavra sequer. Um grito. O grito de Marina.
Não suportando mais meu pai recuou alguns passos e correu jogando todo o seu ser contra a porta do celeiro que, misteriosamente, se abriu sem demonstrar força. No momento em que tivemos a visão do lado de dentro, sendo iluminado pela luz da lua agora, eu preferia que não tivéssemos conseguido abrir.
O luar revelou o caminho de sangue até o corpo dilacerado da minha irmã. Em seu corpo cheio de cortes, era possível ver seu intestino, que estava para fora pelo ferimento em seu ventre. Ao redor dela, uma enorme poça de sangue ia perdendo sua cor aos poucos, conforme se afastava do cadáver de Marina.
Minha mãe se ajoelhou no chão, com as mãos à frente do corpo aos prantos e gritos. Meu pai, em silêncio, caminhou até o corpo da minha irmã, se agachando para a poder segurar em seu colo uma última vez. Eu ainda estava em choque diante tudo aquilo, me virei parar correr quando bati contra um vulto preto. Quando olhei para cima, me deparei com um velho de cabelos brancos, com as roupas pretas.
"Vocês não deveriam estar aqui." Ele pronunciou. Em sua mão o mesmo carregava um lampião para iluminar o ambiente.
"Nós só queríamos ir embora." Meu pai disse, olhando para a filha morta dele.
Parei para observar ao redor, não havia mais nada ali, apenas duas coisas ao chão. O pangarap estava caído próximo a ela, agora encharcado com seu sangue e, curiosamente, sem um dos botões de seus olhos. Ao lado do gato rosa, estava uma faca. Não sei dizer se era o trauma ou a falta de iluminação, mas tive a impressão que pude reparar em uma silhueta feminina na lâmina da faca. Talvez eu estivesse ficando louco.
O velho caminhou calmamente até meu pai, colocando a mão em seu ombro. Numa troca de olhares, eles se entenderam de alguma forma que eu ainda não compreendia.
"Filho, espere com a sua mãe lá fora..." Ouvi meu pai dizer e, atônito com tudo o que acontecera, apenas obedeci sem questionar.
Passei as mãos ao redor de minha mãe a ajudando a se levantar e juntos andamos para fora do celeiro, se afastando um pouco indo na direção do carro. Não tornou a demorar muito, e logo vi uma silhueta sair do celeiro.
No momento em que meu pai apareceu na porta do celeiro, aquele lugar se incendiou todo. Através do fogo, vi o corpo do velho caído lá dentro, próximo ao de minha irmã. Nas mãos de meu pai, havia aquela mesma faca agora com uma coloração escarlate, assim como os seus olhos brilhavam agora em meio a escuridão.
"Não..." Foi a única coisa que a minha mãe disse, antes que meu pai gritasse.
"ERA PRA TER SIDO VOCÊ, GAROTO!" Meu pai esbravejou erguendo a faca na minha direção.
Dali, tudo começou a ficar mais confuso. Vi o meu pai correr na minha direção e, quando chegou perto pronto para me golpear, minha mãe o impediu com um chute que foi de encontro com seu plexo solar, o afastando. Ela havia feito algumas aulas de defesa pessoal quando nova, algo assim. Ao menos, foi essa a explicação que ela havia me dito numa vez anterior.
"Corra filho, o mais rápido que conseguir, e não olhe para trás." Foram as últimas palavras que eu lembro da minha mãe dizer.
Olhei uma última vez para ela, e depois para o que deveria ser o meu pai. Um corvo sobrevoou sua cabeça indo na direção do celeiro em chamas. Não tinha tempo pra pensar nisso agora. Corri para longe dali. O carro não pegava e em todas as quatro portas estavam trancadas. Parei um pouco para tomar fôlego, quando eu vi.
Ali próximo, na porta daquela igreja depois do milharal. Aquela mesma borboleta branca. Sem pensar duas vezes, corri na direção daquele local passando por entre os milhos usando as mãos para empurrar e facilitar minha passagem durante a corrida. Me aproximando das portas abertas daquela igreja, adentrei mantendo as luzes apagadas para que, quem quer que estivesse lá fora, não me achasse. Fui na direção do altar.
Não sei quanto mais ainda me resta. Eu esqueci minha agenda junto aos outros pertences no carro. Tudo o que consegui contar até aqui foi por conta de alguns pergaminhos em branco que encontrei junto a uma pena e um tinteiro. A luz do luar se revelou uma ótima amiga em meio a esta escuridão. Se não fosse por ela, talvez não conseguisse contar a minha história. Saibam que R...
"Filho... É a mamãe." Era a voz dela, mas conseguia sentir algo diferente nela.
Um pingo de sangue marcou o ponto final deste capítulo.

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