— É mesmo uma boa ideia a gente estar aqui? — perguntou Jessica, passando por baixo das grades do parque aquático silencioso. — Não está nem fazendo tanto calor.
— Para de ser medrosa. - respondeu Alice, olhando a amiga terminar sua travessia com um sorriso no rosto.
Mas Jessie não queria. Não pelo fato de estarem invadindo uma propriedade privada, mas por estar sentindo que algo ali não estava certo. Talvez fosse o ar, talvez fosse a sensação de perigo alarmante e as câmeras de segurança espalhadas pelo parque. Era um lugar novo para ela e tinha esse cheiro rançoso e pesado que a fazia querer retroceder. Olhar para as figuras gigantescas dos brinquedos na distância, recortados pelo brilho sublime da lua e de algumas luzes de emergência era como invadir uma tumba de um faraó. "Cuidado", dizia sua mente, "aqui jaz Ramsés e sua maldição. Não toque em nada, querida. Em nadinha".
O Parque Aquático Hemingway era novo e já estava fechado para manutenção no toboágua vertical mais radical de toda a costa leste dos Estados Unidos. Com o tamanho de um prédio de 25 andares, você conseguiria chegar a uma velocidade de 150 km/h, o que garantiria um descolamento cerebral e algum dano severo se por um acaso aquela merda tivesse sido calculada errado. Para isso, então, seriam feitas manutenções semestrais, sempre que o parque fechasse por conta da temporada.
Mas Alice sabia convencer. Sabia falar e argumentar como ninguém, desde a época da escola, quando as duas acabaram se conhecendo e se tornando grandes amigas. Alguns diriam que Jessie tinha só o que eles chamavam de "cabecinha de bosta", mas era a maneira como sua amiga a convencia. No entanto, também negava algumas vezes, quando estava se sentindo motivada ou forte o suficiente para fazê-lo. Perguntava-se se aquele tipo de relacionamento era realmente saudável, mas não conseguia encontrar resposta. Na verdade, tinha medo. Não conseguia imaginar um mundo sem Alice ao seu lado, convencendo-a a fazer qualquer besteira em nome da amizade... Como a vez em que se beijaram.
Não foi besteira daquela vez. Foi bom. Foi verdadeiramente bom. E ela ficava agradecida por Alice ter sido amiga o suficiente para não contar para ninguém. Afinal de contas, na escola, ela era a mais despojada, enquanto Jessie sentava-se na frente, prestando atenção em cada detalhe de cada aula. Só que o beijo foi bom. Foi inesquecível. Teve ainda no final algo de "fim inesperado, ponta solta", como nos livros de terror do seu autor favorito.
E enquanto caminhavam por aquele parque aquático, Jessie deixou-se levar pelos pensamentos soturnos de que talvez seria bom experimentar o beijo de Alice na piscina. Debaixo d'água. Infelizmente, aquele pensamento lhe deu força para continuar.
— Em qual iremos?
— Fiquei sabendo que tem uma piscina coberta onde algumas pessoas que praticam apneia vêm pra treinar. Vamos nela.
Jessica respirou fundo. Passaram ao lado do que parecia ser um tobogã infantil, mas que na escuridão mais se assemelhava a uma cobra gigantesca. Em silêncio e como em um filme de espionagem, elas cruzaram pelo parque de diversões. Seu coração retumbava dentro do peito, mas parte daquilo não era pelo medo de ser pega.
Talvez fosse excitação.
***
Quando o parque foi aberto, era certo de que ele contaria com o que havia de melhor em tecnologia para que acidentes não acontecessem e que tanto o público quanto os investidores, — sendo estes os mais importantes — se sentissem seguros de estarem ali. Então, logo que as propostas de sustentabilidade foram aprovadas pela crítica especializada, o lugar fora aberto e contava com drones de segurança, hologramas na entrada com um super-herói vestido de laranja que as crianças adoravam e os pais achavam saudoso, mas ridículo, além de bonecos animatrônicos que custaram uma verdadeira fortuna.
No Passeio Jurássico, por exemplo, dinossauros saltavam das árvores e alguns até mesmo estavam debaixo d'água, como o enorme Mosassauro que servia apenas para causar onda e espanto nos visitantes. Era um monstro horroroso, mas fazia bem o seu papel. E o fato daquela tecnologia funcionar embaixo d'água, por mais que isso já tivesse sido feito em Tubarão, anos e anos atrás, era um espanto para os investidores.
As barracas de lanche também eram customizadas de acordo com a área que se acessava. Na área dos dinossauros, era um lugar com animatrônicos fofinhos e placas para as pessoas tirarem fotos, cobrando vinte e cinco dólares cada álbum. Um preço bom, disseram os investidores. Na ala de Atlântida, o visitante poderia almoçar em uma cúpula que ficava dentro de um aquário digital que parecia muito com a realidade. Tubarões enormes e peixes fofinhos, além de baleias, desfilavam por ali enquanto eles provavam um delicioso prato de comida. Nada de fast-foods ali. Nadinha. Apesar de, é claro, todos os acompanhamentos serem de frutos do mar ou de animais marinhos, o que realmente não fazia muito sentido. E não precisava fazer, a bem da verdade. Enquanto estivessem lucrando e a sardinha estivesse custando uma merreca, eles continuariam comprando e fortalecendo a pesca predatória. E que importância isso tinha? O aquário era digital! Chupa essa, Sea World. Somos muito mais sustentáveis e não temos orcas super estressadas se alimentando de seus treinadores. Aplausos da mídia. Aplausos da crítica especializada e dos movimentos pelos direitos dos animais. Nem fizeram questão de conferir o cardápio, mas estavam satisfeitos, muito obrigado, traga a comanda.
Mas o melhor mesmo estava nas piscinas aquecidas e aquela monstruosidade dentro daquele galpão. A tal piscina para mergulhadores insanos de apneia era um espetáculo para amantes do esporte. Em seis níveis de profundidade: Oito, vinte, quarenta e cinco, oitenta e cinco, cem e cento e vinte metros, aquilo era para quem ansiava por brincar com a morte. Com câmeras subaquáticas equipadas para providenciar uma maior segurança para os nadadores, aquele monstro contava ainda com um minisubmarino com uma maca e com todo o equipamento para reanimação, caso o esportista perdesse um pouco a noção do perigo e, consequentemente, a consciência. Para maiores proteções e para evitar que pessoas caíssem naquele buraco negro cheio de água e o parque tivesse que desembolsar milhões para cobrir as despesas por acidente de trabalho, contava ainda com um protetor de aço que se fechava sempre que o parque apagava suas luzes e os salva-vidas presentes apertassem um botão.
Fato é que esta chapa de aço não correra pela última vez em que fora acionada, mas o botão havia sido pressionado. Técnicos foram chamados para consertar o mau contato, mas só apareceriam no dia seguinte.
Somente vinte horas depois que Jessica e Alice já tinham invadido a área. Em algum lugar daquele parque, a piscina aguardava silenciosa. E a chapa de aço de proteção esperava para fechar em algum momento.
***
Bob Crosby estava determinado. Com um sorriso pesado no rosto, tentando aparentar o máximo estar no controle da situação, ele rendeu seu colega Sergio, um filho da puta "xicano" de merda, como ele costumava comentar por aí, e sentou-se em sua poltrona desconfortável para ficar olhando para as câmeras do parque aquático Hemingway. Continuou sorrindo mesmo quando o latino desgraçado foi embora e permaneceu assim, como se sua vida fosse uma bela de uma bosta feliz e sem problemas.
Não que as pessoas não tivessem problemas, mas o que deus, louvado seja, estava fazendo com ele era muita sacanagem. Sacanagem da pesada, se é que me entende. Sacanagem da boa. Tão da boa quanto a sacanagem que ele viu em sua casa, quando chegou mais cedo depois de sair para beber com os amigos. A sacanagem gostosa por cima da sua esposa, comendo ela de quatro enquanto ela gritava que ele, o próprio Bob, era um corno de merda. Dá pra acreditar? Mas a culpa era dele. Porra, a culpa era todinha dele.
Devia saber que Esperanza era uma puta mal amada. Deveria saber que estava sendo só usado para conseguir o green card e nada mais do que isso. Aqueles latinos sujos querendo passar para o lado deles... Bob se deixou convencer pelo tamanho da bunda dela e do jeito que ela dançava, é verdade. Foi burro, burro demais. Um baita de um idiota, como seus colegas costumavam chamá-lo na escola. Robert Crosby, o burro da oitava série. Todos viraram uns merdas democratas defensores de negros e latinos. Quem era o burro agora, hein? Quem?
Ele era o burro. Burro, burro, burro...
Sozinho naquele cubículo das câmeras de segurança, Bob estava inquieto, mas continuava determinado. Aliviou o cinto que apertava sua barriga protuberante que saltou pra fora como um golfinho animatrônico naquele parque de merda. Nem o salário de segurança compensava... Quer dizer, ver as mulheres de biquínis até que valia a pena, mas ele era casado. E muito bem casado, pensava. Conseguira encontrar uma "xicana" decente no meio de tanta merda. Sortudo demais.
E antes de descobrir que estava sendo traído, ele acreditava mesmo em sorte. Tinha nascido num lugar bom demais, lá no Texas, onde aprendeu a atirar com seu pai em garrafas, latas e depois pombos e gatos. Era muito bom fazendo aquilo e queria muito servir o seu país. Era o certo a se fazer, ainda mais quando explodiram as torres, um dia que ele nunca esqueceu. Estava no bar, bebendo uma aguardente ruim de dar dó quando a televisão parou naquele exato instante. Bob ficou com o cheiro da fumaça daqueles prédios e corpos queimando no seu nariz por meses, ainda mais quando seu pedido de incorporação fora negado. Maldito Bush, igualzinho ao pai dele, se quer saber. Mesmo assim teve sorte. Conseguiu casar com uma mulher gostosa e que sabia fazer uma comida deliciosa. Pendurou bandeiras na frente de sua casa e até foi em encontros de veteranos. Sortudo demais em ver seus heróis voltando para casa vivos. Alguns fracos no caixão, mas era o preço que o exército teria que pagar por não aceitá-lo, se é que me entende.
E sua puta sorte foi quando deixou sua mulher. Cassie era legal, não entenda mal, mas era mais do mesmo sempre. Comida boa e um sexo por mês. A barriga de Bob aumentava e seu pau vivia mais mole do que duro. Que vida é essa? Que porra de vida é essa? Também foi demitido daquela ValorCoin de merda, transportes de cargas de valor era uma chatisse, mas compensava pela insalubridade e por poder carregar uma arma de verdade nas mãos. Pode crer, Bob se sentia um veterano do Vietnã com aquilo. As pessoas olhavam para ele e ele acenava com a cabeça e as pessoas entendiam quem é que mandava ali. "Quer se aproximar do meu dinheiro, vagabundo? Toma aqui um balote na sua bunda, que tal?".
Mas não mais. Arrumou aquele emprego no parque de diversões como segurança e tinha um bom salário e uma mexicana que gostava da brincadeira, ou que pelo menos parecia gostar sempre. Mas ele a escutara falar enquanto era comida por trás que o corno, ele, o cara que botava comida para aquela refugiada de merda; o homem que forneceu o green card não era capaz de fodê-la como ela estava sendo naquele momento.
Vadia. Vadia sim. E ele não se arrependeu de nada. Entrou no quarto enquanto puxava sua pistola. É, ele tinha uma pistola e a carregava sempre. Aquele era um país livre e ele lhes mostrou a liberdade. Ele estava nervoso, mas até que mirou bem. Antes que Esperanza pudesse gritar por ajuda, Bob já estava disparando. Acertou o ombro daquela mulher desprezível e depois outro em seu plexo. Então mirou no desgraçado e o tiro atingiu sua barriga e o pescoço. Por fim, ficou vendo a latina desgraçada estrebuchar no chão, engasgando no próprio sangue. Bob tirou o pau pra fora e mijou nela. Mijou muito. Vadia mexicana. Depois finalizou com um tiro bem no meio da testa dela. Aquilo ia dar um trabalho para limpar.
E agora ele estava ali. Seu celular tocava sem parar. Recebia mensagens, lia o início e então jogava a cabeça para trás e ria. Que se fodessem todos. Logo estaria acabado. Ele estava determinado. Determinado como nunca esteve antes. Que coisa engraçada! Era só ter uma arma na cintura e você se tornava determinado a fazer o mundo pegar fogo. E ele estaria ali de camarote para ver aquela merda toda explodindo e todas as Esperanzas e técnicos de TV à cabo (ele deveria saber que TVs à cabo não davam tanto problema assim) iriam para o inferno em parcelas de seus corpos. E ele seria condecorado um dia. Fez o serviço. No entanto, dariam a medalha no seu túmulo. Jaz aqui um homem que fez muito pelo seu país. Protegeu os Estados Unidos da América dos latinos.
Se ele deu a vaga de cidadã estadunidense para Esperanza, ele tinha o direito de revogá-la. Deus dá, Deus tira. Era esse o grande esquema da vida.
Rindo e olhando as câmeras de segurança com displicência, Bob nem percebeu a movimentação estranha na área dos dinossauros. Ficou de pé e sua calça aberta escorregou até os seus joelhos. Ah, aquilo seria muito engraçado. Abaixou a cueca e segurou seu próprio pau. Com a arma na outra mão, botou o cano na boca e ainda sorrindo e fazendo um barulho estranho com a garganta, apertou o gatilho.
Seus últimos pensamentos foram: Aqui jaz Bob. Estourou os próprios miolos enquanto pensava na Esperanza. E quando a Esperanza morreu, ele achou que também deveria partir.
***
As meninas já estavam longe demais da cabine para escutar qualquer som que não fosse apenas um pequeno estampido, como um fogo de artifício distante. Meio andando e meio correndo, as duas meninas cruzaram o que faltava do parque aquático em silêncio.
— Ali está. É aquele o galpão. — avisou Alice, com um sorriso no rosto.
Jessica olhou para aquilo e seu sangue gelou por um breve momento. Era enorme e trazia em fonte estilizada o nome "A PISCINA MONSTRO - SOMENTE PARA OS RADICAIS". E apesar de Allie dizer que aquilo era um galpão, ela achou que o nome não condizia com a realidade. Primeiro que era um espaço aberto, mas com correntes e uma bilheteria fechada que não teriam problema nenhum em atravessar. Placas de aviso foram penduradas e em uma das paredes falava: "ATENÇÃO, ENTRADA SOMENTE AUTORIZADA, AMIGUINHOS! SUA PRINCESA ESTÁ EM OUTRO CASTELO! VOLTE DEZ CASAS!"
— Bom, não temos autorização, senhora, mas vamos entrar mesmo assim.
Jessie deu um sorriso nervoso e seguiu a amiga. Sua barriga estava gelada e seu corpo inteiro tremia, apesar de não estar com frio. Ela tinha que ser muito louca para estar fazendo aquilo. Estava se superando em todas as suas loucuras, mas Alice a condicionava àquilo. A sensação de perigo parecia atrair a menina de alguma maneira quase sobrenatural. Jessie não sabia quando era hora de parar, e isso dizia respeito a tudo.
Uma vez, Allie fora pega transando no banheiro da escola com Jack Spencer, o bonitinho cobiçado por todo mundo e que estava no último ano pela segunda vez por saber apenas usar os músculos e o sorriso bonito que tinha, mas nada do cérebro. Jessica não gostava dele, mas começava a suspeitar que não era pelo fato dele ser burro, mas pelo fato de ter tido o privilégio de transar com Alice no banheiro. Mas aquele era um pensamento um pouco sujo, não era? Quer dizer, elas se beijaram apenas uma vez. Jessie não podia ficar nutrindo aquele tipo de coisa pela amiga. Sentiu-se péssima com isso.
A área ao redor era imensa e havia uma linha a se seguir até chegar à famigerada piscina. Esta era oculta do resto do parque por duas paredes grossas de azulejo azul com novos dizeres e uma passagem oval onde certamente era onde faziam novos testes. Tudo com segurança, tudo com a indicação de um médico. Nada disso para as duas meninas intrusas. Seguiram em silêncio, mas Jessie tinha a impressão de que até mesmo o ar que expelia era alto demais e que em breve um grupo de seguranças apareceria para retirá-las do parque e marcarem seus rostos para que elas nunca mais pudessem entrar. Ou até pior. Nunca se sabe o que se passa na cabeça de um bando de homens durante a noite em um lugar escuro.
— Não deveria ter alguma câmera nesse parque? — perguntou Jessica, olhando ao redor. Alice olhou para ela com aquele sorriso. Era o mesmo sorriso de sempre, do tipo que te chama de idiota sem usar essas palavras.
— Deveria, mas acho que a gente fez o caminho certo. Vai ver a gente só tá com sorte, né?
Jessie privou de se responder. Apenas sorriu (um sorriso diferente, um sorriso perdido e sem brilho de alguém com medo, mas disposto a seguir em frente por alguém) e agarrou o corrimão. Aquele lugar deveria estar cheio de gente durante o dia, com seguranças e salva-vidas por toda parte. Ainda que estivesse escuro e elas não tivessem trazido uma lanterna sequer, a menina conseguia enxergar a sombra jurássica de uma cabine onde um salva-vidas deveria ficar com um binóculo. Era um colosso negro na escuridão. Sentiu um arrepio percorrer o seu corpo todo.
Aquele seria o lugar perfeito para alguém morrer.
Por um instante, tudo o que ela mais queria era que fossem descobertas para que assim pudessem voltar para casa e fazer alguma coisa que duas amigas poderiam fazer na segurança dos seus lares. Nada de loucura, senhorita Alice. Nem adianta me olhar com essa cara. Não abrirei mão da minha segurança. Nem pensar. E se tiver um monstro marinho dentro dessa piscina? Quem me garante que não? Jamais vou entrar. Jamais. Pode esquecer. Não vou.
Quando se deu conta, estava fitando a piscina à sua frente. Um buraco imenso e repleto de água, mas com luzes no fundo que tornavam aquilo ainda mais assustador. Era como enxergar uma bacia cheia de sangue para um sacrifício para algum monstro lovecraftiano do tipo que Jessie adorava ler. Dagon, talvez. É, ele poderia estar ali embaixo, à espreita. A miríade de cores avermelhadas trespassava o véu aquoso e refletia assim no rosto insanamente corajoso de Allie, cujos olhos brilhavam.
— Eu não vou entrar nisso. — disse Jessie. E estava falando sério dessa vez. Desistiu completamente. Não faria aquilo. Nem era tão boa nadadora assim!
— Ah, você vai sim. — determinou Alice, sem olhar para ela.
— Não. Não vou, Allie. Sinto muito. Mas posso ficar aqui com você, te vendo nadar e a gente vai conversando.
Alice encarou-a pela primeira vez desde que estivera observando o brilho avermelhado na piscina. Sorriu para Jessie de uma maneira que a menina não esperava. Seu sangue gelou e alguma coisa se mexeu no seu ventre e desceu para sua virilha. Sua amiga soltou o cabelo cacheado por baixo daquela touca que a fazia parecer um daqueles ladrões de filmes de assalto a banco. Aproximou-se, um pé depois do outro, lentamente. Uma verdadeira predadora sabendo que encurralou sua presa. Jessie não se mexeu. Não queria se mexer. Qualquer passo em falso e ela tinha certeza de que a enxurrada de sentimentos que brotava bem no meio das suas pernas se libertaria. E então ela seria incapaz de dizer não. Seria incapaz... Seria...
— Eu não te trouxe aqui só pra gente mergulhar. — disse Alice. Jessica sentiu seu hálito almiscarado. Viu seus lábios próximos do dela. Os olhos castanhos, mesmo na escuridão, resplandeciam com um milhão de cores. Jessie soltou um suspiro de exasperação, mas antes que concordasse, completamente entregue, Allie a beijou.
Jessie pensou em recuar, mas não tinha forças para aquilo. Relaxou o corpo, sentindo a língua de Allie se aventurar dentro de sua boca, enquanto o tesão que sentia ia sendo aos poucos liberado em ondas de calor que envolvia as duas. Com uma das mãos, Jessica segurou o cabelo de Alice e apertou-o.
Allie gemeu e se afastou. Jessica não parou. Trouxe ela novamente para perto. Alice aceitou, com suas mãos deslizando pelo corpo da amante, apertando ora sua cintura contra a dela, ora sua bunda. A piscina deixou de existir naquele espaço. Eram apenas as duas ali, trocando carícias e beijos fortes.
— Chega. Não vamos ser precipitadas. Temos um bom tempo. — disse Alice, sorrindo. Jessie não pôde deixar de sorrir também. Sentia-se capaz de tudo. Olhou para a piscina e começou a tirar a roupa. Os olhos de Allie se demoraram em seu corpo, que Jessica lutava para amar.
Jessie não tinha a cintura fina como a de Alice. Na verdade, ela já vinha passando pelo efeito sanfona por um bom tempo. Sua barriga era um pouco avantajada e algumas estrias brancas apareciam na pele muito branca. Ela odiava aquilo, apesar de às vezes se olhar no espelho e se sentir muito gostosa. Não gostosa como Allie, com sua pele preta, cabelo voluptuoso e lábios grandes. Allie, que ela tanto desejava.
Mas ali, naquele momento, ela não se importava. Era gostosa. Era poderosa. Arrancou toda a sua roupa em segundos. Beijou Alice inesperadamente e pulou na piscina. Sentiu-se ser inundada por uma sensação de libertação e, enquanto afundava, parecia reemergir em um lugar muito melhor. Em um lugar novo, onde se conhecia e se compreendia.
Foram segundos em que ela se manteve submersa, mas não queria erguer a cabeça. Não queria sair dali. A água parecia quente, mas era apenas o seu corpo que insistia em não resfriar. O tesão queimava sua pele, tornava tudo melhor. Tudo deliciosamente melhor. Encarou a profundidade daquela piscina e foi como fitar um abismo daqueles narrados por Lovecraft. Olhos vermelhos à espreita, sedentos.
Eufórica, ela reapareceu. Encarou Alice na beira da piscina, sorrindo, mas já não parecendo tão certa de fazer aquilo. Estava nua também e o brilho avermelhado das lâmpadas (olhos dos filhos de Dagon) refletiam em sua pele arrepiada.
— Vai pular ou eu vou ter que te puxar? — desafiou Jessie.
— Nem pensar, senhorita. Eu faço os desafios aqui.
***
Muitas pessoas têm o costume de fazerem fileiras intermináveis de dominós. É uma prática bem comum, mas que exige paciência e dedicação da pessoa que se submete àquela tarefa. Além da paciência, imprescindível, também é exigido o máximo de coordenação motora, para que assim a pessoa não veja todo o seu trabalho ruir.
Desde o momento em que Jessica e Alice pularam para dentro daquele território escuro e privado, o dono dos dominós começou a se cansar e tornou-se displicente. Já não tinha mais a coordenação motora de antes e cada peça era um desafio ainda maior que a anterior.
Por isso, quando Alice pulou na piscina, na mente de Jessie aquilo soou como uma peça de dominó caindo e empurrando outra. Quando se deu conta, no entanto, já era impossível parar.
***
Ficaram as duas abraçadas e se beijando enquanto lutavam o máximo para boiar. Jessie não estava gostando daquilo. Não conseguia relaxar de maneira alguma, tendo de bater as pernas e imaginando ainda aqueles brilhos vermelhos (os filhos de...) que parecia se aproximar. A luz brilhava com intensidade em cada movimento da água e dava realmente um aspecto romântico para a situação.
Allie foi a primeira a descer seus dedos e apertar o seio esquerdo de Jessie. Ela gemeu e soltou um suspiro entrecortado por um beijo mais longo e doce. Sentiu então a mesma mão deslizar pela sua barriga e penetrar em sua fenda quente e úmida sem rodeios. Dessa vez, Jessica agarrou o cabelo de sua amiga e grunhiu para o céu, sentindo o tesão explodir naquela piscina. Agora, não mais importavam os olhos vermelhos à espreita. Não importava mais nada. Se continuassem assim, acabaria atingindo o orgasmo em pouco tempo.
— Sempre quis fazer isso em você. — disse Alice, continuando a fazer aquilo que sabia fazer tão bem.
— E por que demorou tanto tempo? — questionou Jessica. Beijaram-se mais uma vez. As pernas estavam cansando de tanto bater.
— Sei lá. — respondeu ela. E então parou. E subitamente desapareceu, mergulhando para dentro daquele monstro aquático.
Jessie sentiu uma onda de frustração passar pelo seu corpo, mas tentou sorrir. Mergulhou atrás da amiga, prendendo bem a respiração. Era quase impossível enxergar Alice ali embaixo, mas conseguiu ver seu vulto. Foi para perto dela. Seus joelhos gritavam, mas o pulmão ainda tinha ar. Tocou a amiga e juntas desceram mais um pouco, até a primeira plataforma.
Lá em cima, a chapa de aço se fechava lentamente.
Mas elas não perceberam. Alice e Jessica nadavam como se fossem sereias e estivessem em seu habitat natural. A maneira como se moviam era graciosa, o modo como se tocavam, dançando, bailando por entre a água, com os corpos sendo iluminados pelo vermelho poderoso daquelas lâmpadas.
No entanto, o fôlego de Jessie estava acabando. Precisava subir. Fez sinal para Allie, que concordou fazendo um OK com os dedos e começou a bater os pés novamente. A queimação em seu peito começava a aumentar e a ansiedade para se ver livre daquela água. Estava perto agora, mesmo que não conseguisse enxergar totalmente.
Seu rosto então se chocou contra uma placa de aço que não deveria estar ali. Assustada, ela recuou, sentindo o pânico crescer em seu peito. Tinha nadado para o fundo? Não era possível! Seu fôlego não aguentaria tudo aquilo! Sua visão se turvou e ela sentiu uma dor lancinante subir do seu nariz. Algo espesso passou na sua frente e ela percebeu que estava sangrando. Subiu novamente, tocando e sentindo sua mão escapar apenas poucos centímetros da água. Sentiu também o toque frio do metal.
Logo abaixo dela, subia Allie. Jessie tentou avisar, desesperada, sentindo o ar realmente lhe faltar e não conseguiu. Como um peixe que se descobre aprisionado em um aquário, Alice sentiu sua cabeça colidir com força com aquela chapa.
— Meu Deus. Meu Deus! - gritou Jessie, colocando um pouco da cabeça pra fora. A única coisa que conseguiria fazer para respirar, dois centímetros abaixo daquela chapa. Sua voz parecia não propagar. — Allie! Alice! Meu Deus!
— O que é isso? Caralho! O que tá acontecendo! O que é isso?! A gente nadou errado!
Se alguém pudesse vê-las de fora, perceberia como elas se pareciam com aqueles marinheiros presos na parte mais baixa do navio, lutando para respirar. Lutando para não morrerem afogados. Sem terem nada para segurar, contando apenas com o corpo e com a sorte para que ele aguentasse o máximo que desse. Mas como poderiam aguentar? Aguentariam até que momento? Jessica respirava pela boca e sentia sangue e água entupirem sua garganta. A dor deu lugar ao amortecimento, mas o líquido escarlate continuava nadando ao redor. Quente e cruel.
— SOCORRO! POR FAVOR! ALGUÉM AJUDA! — gritou Jessie, sentindo o desespero tomar conta do seu corpo. Ao seu lado, Allie começou a chorar.
Suas pernas batiam. Lá embaixo, os filhos de Dagon assistiam a tudo com olhos vermelhos, à espreita. Quem seria a primeira a morrer afogada? Quem seria a primeira a se transformar em comida para monstros e habitar para sempre as profundezas daquela piscina? Dedos gelados e maquiavélicos, cadavéricos, corriam pelas pernas de Jessie e a menina sentia que não conseguiria mais boiar. Afundou. Olhou ao redor, sentindo as juntas dos seus joelhos gritarem. Então subiu novamente, chocando sua testa com a superfície fria e mortuária daquela chapa de aço.
— Eu não quero morrer. Eu não quero. Deus, por fav... — Alice não conseguiu terminar. Água entrou em sua boca e desceu até seu pulmão. Ela tossiu e afundou, sentindo-se aturdida. Não era o tipo de ajuda que ela esperava receber de Deus. Quando voltou, julgou ser um milagre. Achou que morreria afogada naquele exato instante. Quando tornou a encontrar força o suficiente para gritar, ela assim o fez. — DEEEEUS! NÃO!
— Meu Deus, eu não vou conseguir. Eu não vou conseguir. Eu não vou! — chorou Jessica, trocando a letra V pela letra B por causa do seu nariz. Ia morrer. Estava sentindo isso. Ia desaparecer. Afundou mais uma vez. Tinha que achar outra saída. Nadou de um lado para o outro. Os músculos de suas coxas pediam por clemência. Elas já estavam há trinta minutos nadando sem nem tocar os pés no chão.
Não havia saída. Era isso. Iriam morrer, a menos que alguém soubesse que elas estavam ali. Mas como saberiam? Não era para ninguém estar ali. E as câmeras de segurança que as gravava, apesar de funcionarem, já não serviam de nada para o segurança cujos miolos continuavam a escorrer pela parede da cabine.
No escuro tórrido, entorpecida pela dor, Jessica não viu Alice se aproximar. Quando sentiu uma mão agarrar o seu tornozelo, chutou sem pensar, gritando. Seu calcanhar acertou Allie na têmpora. A pegada em seu pé se desfez lentamente. E tão surpreendentemente quanto Alice apareceu, seu corpo foi desaparecendo enquanto caía para a escuridão. Bolhas de ar se formavam e água ia entrando em seus pulmões.
Lentamente, o corpo de sua amada descia, já se afogando. Dez, doze, quinze, trinta metros. Descendo para nunca mais subir... Ou subiria depois, quando os gases da putrefação a lançassem para cima como um prêmio maldito de uma pesca desgraçada.
— Allie, alguma coisa agarrou meu pé! Allie, eu não consigo te ouvir! Onde você está?! Tem alguma coisa com a gente! Meu Deus, tem algum monstro aqui embaixo com a gente! ALICE! — gritou Jessie para o nada. Começou a nadar, sabendo que tinha acertado alguma coisa com seu pé e que a afastara. Em sua mente, imaginava uma criatura horrenda como um monstro do pântano e rosto de peixe, com dedos membranosos tocando sua carne, puxando-a para baixo. — Continua gritando, amor! Continua gritando! — mas não havia ninguém gritando exceto ela.
Nadou, mergulhou e voltou para a superfície. Respirou e gritou. A dor era lancinante em sua bunda, subindo e irradiando em sua cabeça. Iria morrer. Tinha toda a certeza do mundo. Onde estava Allie? Por que não conseguia encontrá-la? Por que não conseguia ouvi-la?
Socou a chapa de metal e afundou novamente. Já estava ficando cada vez mais difícil. Não estava preparada para aquilo. Jamais estaria. Jamais em sua vida.
O relógio bateria 21h00 do lado de fora. Quarenta e cinco minutos que ela nadava sem tocar em nada. Quinze minutos desde que perdera o contato com Allie. A criatura que morava embaixo poderia tê-la capturado. "Ou você pode ter matado ela com aquele chute", pensou Jessie, o que a levou a um novo ataque de pânico. Matara sua própria amiga. Era a responsável por isso. Deus, não. Não. Não. Não.
Sim.
E tão logo a certeza lhe acertou, sua perna esquerda travou. Jessica gritou e água entrou em sua boca e desceu pela sua garganta. A cãibra gritou, como se cada músculo do seu corpo estivesse neste momento se vingando por cada segundo em que se esforçou para mantê-la viva. Ela sentiu-se afundar, sendo engolfada e sentindo mais água entrar. Tentou respirar, mas nada lhe veio a não ser o pânico. Seus dedos se fecharam ao redor da sua garganta, arranhando, tentando criar guelras. Sua carne era cortada pelas unhas grossas e mais sangue a inundava. Sua coluna explodiu numa dor como ela nunca imaginou. Seus olhos começaram a se fechar.
Jessie bateu as pernas, mas não tinha mais a coordenação necessária. Agora, tudo o que sentia era a água penetrando enquanto ela tentava respirar. O afogamento começou a acometê-la à medida em que ia descendo mais e mais. Suas costas tocaram em alguma coisa mole. Seus olhos estavam quase se fechando, mas as luzes vermelhas ajudaram-na a ver do que se tratava.
Era Alice, boiando. Seus olhos continuavam abertos, iluminados pelo brilho escarlate. Ela a fitava, vendo Jessie escorrer para o fundo. Até que o desespero acabou. Os braços e pernas ficaram pesados. A cabeça ficou pesado.
Boiando. Boiando para o fim. Boiando para sempre. Caindo. Indo para o fundo.
Para onde os filhos de Dagon a esperavam.
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Dominó
Mystery / ThrillerDuas amigas decidem invadir um parque aquático durante a noite para nadarem na piscina mais profunda dos Estados Unidos. Um segurança do parque descobriu a traição de sua esposa e toma uma decisão. O dispositivo de segurança da piscina se quebra e s...