Jogo a última pá de terra sobre o monte e deixo o gramado exausto. Suor escorre pelas minhas têmporas, mesmo com o sol baixo. Já são seis e trinta.
Caminho em direção a cozinha com calma, sinto falta de quando ali havia panelas cheias de sopa que enchiam meu estômago, minhas narinas e meus olhos com sua beleza, mas todos os funcionários foram demitidos da fazenda, menos eu.
Mesmo que não houvesse mais vida naquela casa, ainda era preciso que o jardim ficasse impecável os trezentos e sessenta e cinco dias do ano.
Esvazio a água do regador na pia e a observo escorrer pelo ralo como minha esperança de voltar a ter uma família. Sem minha mãe que se foi quando eu era jovem, sem meu pai que nem conheci, agora sem dona Francisca fazendo suas receitas deliciosas nessa cozinha, eu só tenho o jardim.
As flores são a única criatura viva que eu sempre amei.
Quando a última gota de água sai do regador, uma barata gigantesca se precipita para fora do ralo da pia ensopada e corre pelo armário da cozinha. Fico enojado.
Apoio o regador sobre a bancada onde a barata deixou suas pegadas, abro a torneira e deixo a água lavar as camadas de terra que grudaram na pá durante o dia, assim como lavo minhas mãos. O som da água saindo da torneira é quase relaxante.
Deixo a pá ao lado do regador e caminho até a geladeira onde deixei minha garrafa de água pela manhã, agora, já no final do dia, resta apenas um gole longo.
Fecho a geladeira encostando meu corpo cansado contra sua porta gelada. Logo será inverno e será terrível estar naquela mesma posição. Olho de soslaio para sua estrutura. Um homem com meu porte não cabe ali dentro, mas talvez um menino de um metro e meio caberia com sobra.
Guardo essa percepção no fundo da mente, virando a cabeça para beber até a última gota da minha garrafa.
Eu não bebo nenhuma água que vem dos canos dessa casa, não importa a sede que tenha.
Atravesso a cozinha com calma e pego minha pá já quase seca. O canto dos grilos indica que passam das sete. Jogo a garrafa vazia junto com a pá dentro do saco que pousou pacífico no canto da porta o dia todo, o apoio com dificuldade no ombro direito e vou embora.
A avenida que enfrento é perigosa para atravessar a pé, mas já fiz tanto isso que poderia fazer de olhos fechados. Sinto algumas gotas baterem na minha pele e um raio ilumina o horizonte. O estrondo que segue deixa a sensação de estar tendo um terremoto.
Hoje a avenida está calma. Dos quinze minutos que caminhei devagar, apenas uma moto com um motorista solitário passou com pressa deixando apenas sua brisa bater em meus ouvidos desprotegidos.
Vejo um menino atravessar a avenida correndo com uma mochila sobre a cabeça e a voz de uma mãe aflita cruza meus ouvidos. Ignoro. Continuo em frente, mas logo hesito quando ouço o som de tecido se partindo. Minha pá passa pelo vão que se abriu no saco atingindo com força o chão. A pego colocando no bolso da calça e continuo a caminhada.
Acredito ver a silhueta da mulher balançando os braços. Brincando de adivinhação, acho que ela queria que eu parasse o menino. Fingi não ver aquela senhora correndo em minha direção e aumento meus passos, mais quinze minutos e estou em casa.
Diminuo a velocidade conforme a chuva aumenta sobre a minha cabeça. Estou ensopado, mas feliz. Enquanto equilibro o saco sobre meu ombro, com a outra mão procuro as chaves no meu bolso, estou quase em casa, mas sou interrompido pelo som de sirenes.
Quatro faróis se aproximam com velocidade enquanto vejo as luzes piscando com violência, formando desenhos incompreensíveis na chuva. Os carros encostam e um dos policiais sai com paciência do primeiro.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Camille e outros contos
HorrorEssa é uma coleção de três contos de terror independentes da autora Ludimila Ferreira que perpassa por serial killers, sequestros e assassinato. NÃO É INDICADO PARA MENORES DE 18 ANOS. Contos: 1 - O Homem do Saco 2 - Adeus ano velho 3 - Camille