Único (monocromático)

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  Os olhos cansados de Vincent pesavam enquanto via o entardecer através da janela do trem. As vozes se tornavam mais baixas e distorcidas, como uma melodia num sonho. Quando chegaram ao seu destino o céu já estava completamente escuro. Vincent e seus pais haviam se mudado da sua cidade natal agitada para uma mais calma, a fim de desfrutarem o resto das suas vidas com tranquilidade.

   Porém, o jovem Vincent não poderia estar mais infeliz. Ele nunca pôde ser ele mesmo e nessa cidade tudo parecia ficar mais complicado, ele sentia-se pequeno e impotente. Todos lhe diziam que sua mente era fértil demais para sua idade e ele tentava não deixar-se abater por isso, mas era difícil não pensar que ser diferente era errado quando todos ao seu redor lhe diziam coisas tão cruéis. Então, pelas madrugadas ele se deixava sangrar em diversos tons sobre seus papéis e telas, na tentativa de eliminar a dor persistente em seu peito.
   Às vezes buscava seus velhos brinquedos empoeirados e recordava a época em que as cores não passavam de um passatempo inocente. Ele precisava matar sua infância, criar uma nova personalidade. Não havia escapatória ou final feliz. Já havia tentado conversar, mas tudo que recebeu foram duras palavras e cicatrizes permanentes, por dentro e por fora. Então, numa tarde fria ele caminhou até uma praia vazia apenas de bermuda com duas sacolas repletas de brinquedos, materiais de pinturas e revistas em quadrinhos. Ao anoitecer tudo aquilo não passava de um monte de cinzas.
   E com o passar dos anos, ao invés de andar com as roupas sujas de diversas cores, ele usou ternos escuros. Andou por corredores escuros. Digitou em um notbook escuro numa sala escura. Após algum tempo seu mundo se tornou vazio e monocromático. Depois de um dia longo e cansativo, ele decidiu voltar por um caminho diferente e parou em frente ao teatro velho e grande da cidade. Observou as pessoas que iam e viam sob as luzes fracas dos pequenos postes que enfeitavam a praça que cercava o local, até que seus olhos pararam na fonte de água, onde um cisne negro nadava tranquilamente. Não entendia como as pessoas não paravam para tirar fotos ou admirar aquela linda criatura, elas apenas passavam direto sem ao menos direcionar o olhar para lá. Vincent resolveu se aproximar um pouco mais para observar melhor o ser que tanto chamou sua atenção. Uma sensação de d´javu o atingiu, mas ele ignorou. Ficou lá por um longo tempo e depois retornou a sua pequena casa, passando pelas ruas escuras e agora, quase vazias, ainda sem conseguir tirar o misterioso cisne dos seus pensamentos.   
   Desde aquele dia, sua principal motivação para trabalhar era o fato de ver o cisne negro pelos arredores do teatro todos os dias. Certo dia, chegou um pouco mais tarde e se desesperou ao não encontrar o cisne. Às pressas, entrou no teatro. Estava aparentemente abandonado. O lugar cheirava a mofo, havia goteiras e água escorrendo desde o teto até o chão empoeirado. Algumas das cadeiras faltavam uma perna ou estavam partidas em pedaços. O palco era o único lugar que se encontrava em um estado aceitável. Deu uma volta para observar melhor o espaço e se assustou ao ouvir a cortina se movimentar atrás de si. Quando se virou, ele teve a visão mais surreal e bela de sua vida. O cisne negro estava no palco e de suas asas saiam pontas de dedos humanos, que logo se transformaram em braços, e com um giro o cisne se transformou por completo num belo homem. Ele trajava uma roupa de couro preta colada ao seu corpo escultural. O modo como ele dançava fazia parecer que seu corpo e alma estavam profundamente conectados com alguma melodia, mesmo que o teatro estivesse silencioso. As pernas se esticavam junto com os braços, sua coluna arqueava como se ele não possuísse ossos e seu rosto delicado permanecia com uma expressão de dor. Quando parou de se movimentar, seus olhos negros se encontraram com os olhos verdes daquele que lhe observava da platéia. Uma expressão de surpresa tomou conta de seu rosto.


_ Você voltou. Consegue se lembrar de mim?_ a voz melodiosa reverberou pelo teatro 

_  A minha memória não é tão ruim assim

_ Por que demorou tanto tempo?

_ Mas eu vim todos os dias_ esbravejou confuso

_ Não. Você retornou depois de cinco longos anos. Você me criou e depois me esqueceu?_seu tom carregava mágoa

Os olhos do homem estavam marejados e começaram a ficar vermelhos, assim como sua face. Ele se aproximava cada vez mais.

_ Como eu criei você?

_ Nos seus sonhos. Por favor, não me esqueça, já estou desgastado e logo morrerei.

   O coração de Vincent acelerou ao ponto de doer nos seus ouvidos. Sua memória o levando para a tarde fria na qual queimou sua própria vida.Naquela noite ele sonhou com um cisne negro. Seus olhos se arregalaram e ele correu até o palco para abraçar o ser que agora não era mais tão misterioso. Quando seus corpos finalmente se juntaram, arrepios percorriam pela sua carne e pela primeira vez, ele se sentia completo. Estava com a sua obra de arte. Sentia-se  mole e deslizou até o chão, com um sono insuportável. Quando não sentiu mais a pele quente do outro, tentou esticar as mãos em busca dele, mas adormeceu. 

   Quando acordou uma luz forte e branca invadiu sua visão. Percebeu que estava em um hospital.  Sentou-se na cama rapidamente e uma lágrima solitária escorreu pelo o seu rosto, o medo de que nada daquilo tivesse sido real esmagava seu coração, como se estivesse se afogando em mar profundo, cada vez mais fundo. Despertou de seus pensamentos sombrios com o barulho da porta abrindo. Uma enfermeira entrou e lhe entregou um bilhete com um sorriso no rosto, saindo logo em seguida, sem dizer uma palavra. Se aquilo fosse um sonho, com certeza era o mais estranho que tivera em toda a sua vida. Com pressa, abriu o bilhete e leu o que estava escrito

"eu sou real"

Os olhos brilharam pelas lágrimas que começavam a se formar e os dentes salientes formaram um sorriso grande quase cortando os lábios ressecados. Desconectou os aparelhos hospitalares de si rapidamente e no momento que seus pés tocaram o chão, ele se sentiu tonto, o que quase resultou numa queda, mas se segurando na cama ele conseguiu recuperar o fôlego. Correu em disparada pelos corredores do hospital com médicos e enfermeiros tentando o alcançar, mas fracassando. Do lado de fora do hospital, recebia olhares tortos e algumas pessoas tentavam se esconder, afinal não é todo dia que se presencia um homem descabelado correndo pelas ruas com roupas brancas. Sua energia era tanta que conseguiu chegar até o teatro. Ao encontrar o homem já o esperando na porta, ele se atirou em seus braços, mal dando tempo para o outro raciocinar. Os dois caíram no chão gargalhando alto.

_ Você veio me salvar_ o rapaz abaixo de si sussurrou no seu ouvido.

Quando Vincent tirou o rosto da curvatura de seu pescoço, seus olhares se encontraram, expressando o que um livro inteiro sobre amor não conseguiria descrever. Assim, os lábios se esfregaram suavemente, com suas cabeças apenas se movendo para cima e para baixo. O que estava abaixo teve a atitude de aprofundar o beijo, o que resultou num arfar de ambos.

_ Eu te amo_ murmurou Vincent no breve instante em que as bocas se afastaram em busca de ar

_ Eu sempre te amei

_ Eu ainda não sei o seu nome

ambos riram baixinho, se olhando. Vincent passava os dedos suavemente pelo rosto com algumas cicatrizes, mas que não o deixavam nem um pouco menos bonito.

_ É Arthur, mais conhecido como o seu amor.

_ Só meu?

_ Só seu

Se beijaram por longos minutos até que sentiram seus lábios dormentes. Daquele dia em diante, Vincent largou seu emprego e se entregou ao amor e às cores novamente. Percebeu que sua imaginação era um presente e permitiu-se voar até o infinito, num foguete chamado vida e com um companheiro chamado Arthur.

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