Ela dançava a um ritmo frenético. Seus pés deslizavam pelo chão de areia batida, fazia rolar os grãos nos movimentos intensos que dava. Os tambores de toque aveludado cantavam junto com a terra, ressoavam dentro de si, com as batidas de seu coração.
Era tudo num pulso só. A dança, a floresta, o céu, os espíritos, sua alma. Tudo convergia num mesmo compasso, caleidoscopicamente. Turbilhões de emoções, sensações, girando em espirais além do tempo e do espaço.
E era o voo da alma o que ela precisava alcançar. Voar mais alto que a mais alta ave, ultrapassar as montanhas, ver os planos de cima, as linhas que seguravam o mundo naquela realidade. Alcançar as cores distorcidas, os sons saborosos, os aromas coloridos. Chegar ao ponto em que um único pensamento comporta tudo o que já foi, é e será, e as palavras não são suficientes para revelar a complexidade da existência.
A noite caiu. A noite que ela viera buscar. A noite mais escura da alma. A que só podia ser encontrada no mais profundo de si e era a mesma que todos os viajantes do universo encontravam nas mais ásperas jornadas.
Ali não havia guia ou amuletos para lhe auxiliarem. Não havia espíritos protetores ou companheiros. Só a noite escura. O tambor retumbava dentro de si, o coração da terra, da qual todos os seres mantêm descendência.
Ela caiu.
Sobrepujara a exaustão. Os pés ainda se moviam autômatos às pancadas do tambor sonoro. Levaram a jaúna à sua boca, o fluxo apenas escoou para dentro de si.
Ela havia realizado o milagre mais uma vez, selara a outra metade da noite no toco do tucumã. Podia morrer em paz. Na próxima vida renovaria seus votos.
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A Noite Escura
Short StorySó ela podia alcançar o indizível, mas para isso precisaria enfrentar a noite escura...