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Meu irmão e eu nem sempre fomos assim, opostos. As brigas na infância começaram principalmente depois que papai nos deixou.

Eu, mais velha dois anos, precisei ser também a mais estudiosa, a mais cuidadosa e, talvez por isso, a mais zelosa de algumas tradições. Sobretudo porque Pedro, que antes já fora doce, estava virando um menino levado, que havia passado a odiar a escola e tudo o que viesse dela. E nossa mãe, que mal tinha tempo para si mesma, trabalhando em dois ou três empregos para manter a casa, não podia ter ainda mais aborrecimentos do que os que ele lhe dava, coitada.

Essa história nasce justamente de um projeto escolar que eu estava preparando e que meu irmão quis, desde o início, atrapalhar a todo custo. Basicamente, eu desejava saber o poder da Coca Cola (que Pedro bebia como se fosse água) como solvente de orgânicos, e aí provar porque seria bem mais saudável desconfiar ao menos em parte dos comerciais descolados que vendiam aquele xarope tão querido de tantos.

Assim, peguei um dente de leite meu que havia caído há pouco ("Último vestígio de sua infância, Manu!", pensei) e mergulhei na solução escura. O dente, que não tinha um único vestígio de cárie em toda a sua prodigiosa brancura, desceu e depois subiu, e ali ficou boiando, quase imóvel, em um potinho, do lado da minha cama.

No dia seguinte, que era sábado, acordei e me deparei com meu irmão, ainda de pijamas, olhando para o potinho. Havia um misto de curiosidade e desconfiança nos olhos dele, enquanto observava meu experimento. Fingindo que ainda dormia, eu o vi enfim deixar o quarto, com a mesma expressão inquiridora.

Apenas depois do café foi que peguei meu potinho com o dente e a Coca. Então, levei até a bancada que papai fizera para mim no quarto (sob medida, construída em sua oficina improvisada na garagem), para colocar meu microscópio.

Bem, qual não foi minha surpresa, ao olhar pelo aparelho, e constatar que algo se movia no meu belo dente que boiava naquele mar açucarado.

"Alguma coisa se movia" é uma maneira modesta de falar do que vi. Ampliando mais a lente, observei pequenos seres, mas nada semelhantes a vírus ou bactérias. O paralelo mais próximo era com nossos animais, porém diferentes de todos os que eu já vira, na Terra, em programas como os do National Geographic, que eu adorava.

Além disso, não eram todos iguais, e já começavam a se diferenciar. Quer dizer, havia alguns com cascos, outros com pelos e outros ainda com uma superfície desconhecida para mim, ligeiramente luminescente, puxada para o azul. Uns voavam e eu tenho certeza de que vi algo grande (para os padrões daquele mundo) nadando no vasto oceano de Cola.

A maioria, no entanto, andava sob quatro patas sobre a superfície do dente, ali transformada em um tipo de crosta terrestre, em que vários tipos de vegetação floresciam. Olhando com mais atenção, percebi que alguns daqueles seres, porém, caminhavam ou tentavam caminhar usando apenas os membros inferiores.

Tirei os olhos do microscópio, aterrada. Afinal, eu, uma simples criança, uma menina com dez anos com a dentição incompleta, havia criado vida? Era isso, mesmo? Podia isso, Jesus?

Naturalmente, guardei minha descoberta para mim, e apenas para mim. Mas Pedro logo desconfiou de algo, porque, enquanto jantávamos na sala, vendo TV (ainda não existia streamings, naquela época), ele, que gostava tanto de assistir a qualquer coisa, por mais imbecil que fosse, desde que lhe tirasse os dois pés da realidade, ficou a fazer-me perguntas sobre meu experimento, sem prestar atenção ao que passava na Globo.

Por via das dúvidas, antes de dormir, tomei o cuidado de esconder meu pequeno experimento em um lugar que Pedro evitava chegar perto, da mesma maneira que o diabo fugiria da cruz: minha ainda incipiente estante de livros.

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