ACORRENTADOS

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O grilhão rangeu junto com os dentes dele, a posição era desconfortável apertava o pescoço se ele mexesse os braços, mas ele não quis demonstrar sinais de dor, haveriam sádicos demais naquele lugar para apreciar o sofrimento alheio, ele precisava se concentrar pelas horas que iriam se seguir. O tilintar do metal usado era desarmonioso, evidenciava além da violência uma sonoridade de emoções ruins, mas uma das partes ali demonstrava humor.

O capataz estalou o chicote para chamar atenção, depois puxou a guia da corrente, os elos se moveram mais uma vez em uma desafinação horrorosa de metal enegrecido de sangue, se esticaram e zuniram num volume inaudível, mas ele nem se mexeu, seus braços fortes seguraram o puxão quase sem esforço, os anos de trabalho, de peso em seus ombros e de exploração transformaram não só aquele corpo, mas a alma e a mente naquela coluna de músculos e diferente do primeiro que puxava com ferocidade, o outro resistia com perseverança. Os olhos se cruzaram, o capataz usou o medo para intimidar, mas não havia medo nos outros olhos, não havia nada nem culpa, e não foram aqueles olhos que vacilaram, ambos se olharam e apenas um deles ficou surpreso no que via, aquela pele negra reluzia num brilho ocre com a suave luz do luar que entrava pelas frestas e como o metal que ambos seguravam havia uma sintonia entre aquela pele níquel e o metal, ambos eram rijos.

Havia uma sensação sórdida no capataz ao leva-lo para fora, algo como empoderamento e vitória só que em níveis tão execráveis quanto ao caçador que mata uma presa por esporte ou prazer só que mais desumana. Ele caminhou para fora por vontade própria estava cansado de cárceres, mesmo sabendo que seria sua última noite, o ar livre era mais convidativo. Ao por os pés para fora da senzala o vento soprou forte de baixo para cima, era a mãe terra dizendo para erguer a cabeça, e ao mesmo tempo ele respirou fundo, encheu os pulmões e se pós numa posição ereta e desafiadora, o capataz ao vê-lo não gostou, contudo não havia nada que pudesse fazer para impedir.

Ambos passaram por detrás do púlpito, a fila de guardas os aguardava, desceram as escadas e foram ao centro do palanque, lá estava o tronco, o lugar era usado para julgamentos, mas ele não tinha esse direito, na verdade não haviam direitos atribuídos a ele ou aos de sua cor, eram uteis para construir castelos, mas não podiam morar neles, eram uteis para construir igrejas, mas não tinham alma para serem aceitos no mesmo céu, aquela era apenas mais uma construção que seus iguais levantaram para mais um proposito nefasto, afinal os outros queriam ostentar poder.

As correntes passavam pelas argolas do tronco, cada elo vibrava em uma nota diferente, e embora não ousassem soar de forma agradável por algum motivo ele não se sentiu preso quando puxaram seus tornozelos, pulsos e pescoço, seus músculos se contraíram na mesma medida. Já o capataz sentiu cada passada de elo pelas argolas como um calafrio de emoção, o mesmo que causa a ginge, o frenesi singular que todos sentem ao ouvir um zunido irregular e irritante que nós faz contorcer em agoria, e naquele breve momento o torturado foi outro.

Os primeiros a chegar foram os vendedores de bugigangas, seguido por toda a corja do poder público local, e por fim todo o tipo de curioso, havia uma euforia incomum no lugar para uma execução. O clima amanheceu nublado para aflorar o lado torpe do homem, havia todo tipo de transação imunda acontecendo e por algumas horas o festejo e adoração à violência foi esquecido pelo comercio absurdo de pedras, ovos e frutas podres e todo o tipo de objetivo indecente que possa ser jogado a outrem, incluindo dejetos. Foi a primeira vez que a guarda da cidade teve que proteger um negro, mas não havia nenhum sentido nobre naquilo, o ambiente só estava se enchendo de ódio ambulante, mais da metade dos presentes não fazia ideia do crime cometido, uma outra parte não se importava só estava lá pelo show de horrores e aqueles que realmente falavam a respeito procurava no ambiente a vítima.

Logo a história se tornou pública, e à medida que passava de pessoa para pessoa algo se perdia nela, era acrescentado agressão, ferocidade, ódio, depravação e insanidade, afinal de contas era esse o único lado da história que importava e a massa não parava para pensar que por alguns instantes fora criado uma persona inexistente, apenas uma pessoa presente sabia o que havia acontecido, entretanto ela jamais seria ouvida. O orador dividiu o palco com o condenado, contou a mais nova versão da história regrada de crueldade e requintada com depravação e violência de como ele invadiu o lar de seu senhor o matou, destruiu toda a casa, arrombou a porta do leito da senhoria e a tomou para si contra as súplicas negativas dela, antes do final do discurso o orador deixa o palanque, pois as pedras começaram a voar, logo o lugar se tornou um reflexo do interior de cada um, estava totalmente imundo, o curioso é que nem mesmo um terço do que foi atirado em direção a ele chegou a acertar, a mira dos presentes era tão afiada quanto a crença na verdade, o lugar seria finalmente aberto para que o povo inquieto pudesse invadir e fazer justiça com as próprias mãos.

Ele respirou fundo novamente olhou para cima, mesmo o grilhão apertando o pescoço para baixo, rogou a sua religião considerada pagã para uma passagem tranquila, seu corpo estava suando frio embora não estivesse muito machucado a adrenalina liberada pelo estresse já havia atingido níveis tão altos que tentava anestesia-lo de toda a dor que ainda viria e por mais que pareça estranho ele não estava com medo, o que o consumia era a ansiedade.

Eis que surge o outro ponto imutável da história, ela que agora era viúva e desonrada aquela que foi encontrada humilhada e violada, a quem todos falavam pelos cantos, onde os olhares eram de ostracismo, ela deveria ser a vítima, mas era tratada como culpada, era como se o fato de seus cabelos longos, sua pele lisa e rosto delicado fosse a causa da ação que gerou todo o murmúrio, que a simples ação de sorrir é mandar sinal e carta branca para que o violador ataque, agora era esperado que ela devesse agir para recobrar o que a sociedade tirou, algo que ela não sabia que tinha e também não se importava em recuperar, mas que aos olhos dos outros é importante e insignificantemente sem valor para ela... a opinião alheia.

O público ao vê-la entrar lhe oferece todo o tipo de arma branca, era esperado dela o primeiro golpe para a carnificina, até mesmo o capataz reprime o chicote, as coisas param de voar em direção ao cativo, ela caminha por cima da sujeira sem olhar onde pisa sabendo que está acima de tudo aquilo, o público a vê chorar e interpretam o pranto como a virada do jogo, onde o agredido se torna o agressor, que o oprimido se torna o opressor. O silencio se apossa do ambiente, e apenas o barulho das correntes é audível quando ele ergue o rosto para vê-la, mas para apenas dois ali presentes aquele barulho não é um arranhão fino, distorcido e agudo no pé do ouvido. O capataz é o primeiro a largar o que segura para tapar os ouvidos com as mãos, seguido pelo público que faz o mesmo gesto alguns até rolam no chão em agonia, era como esfregar os dentes de um garfo no fundo da panela.

A atenção volta para o centro, mas ao vê-la retirar a camisa suja dele algo não parece certo naquela cena, era esperado outra coisa, mas para os dois algo ainda é certo, ela retira aquela camisa já em trapos, suja de sangue e outras coisas, enquanto ela limpa o peito dele analisa quais eram as cicatrizes antigas e as novas, muitas sobrepostas umas as outras, ela não ousou olhar para seus olhos, pois mesmo sendo gentil no gesto a pele dele respondia com repudio pela dor ao mais suave toque, porém foi inevitável não encará-lo, ela se aproximou até tocar seu corpo com o dele e o beijou profundamente, pegou a mão direita dele e levou ela até seu ventre, eles sorriram por apenas alguns segundos antes de chorarem copiosos, ele não abriu os olhos, privou esse e os demais sentidos apenas no toque da vida em formação. Ela puxou um dos grilhões do tronco e o tilintar da corrente de metal com as argolas tocou a melodia de um elo impossível. Houve outro beijo composto pelo rouxinol de metal e carne quando ela colocou o grilhão no próprio pescoço, não podia mais esconder sua decisão, seja qual for o destino dele ela o partilharia sem hesitar, ele a abraçou quebrando as travas dos pulsos enquanto ouvia o réquiem de boas-vindas a morte.

O público agonizou em calafrios com o ranger do metal disforme, fino, agudo e táctil que se seguiu, a cena que presenciaram era incorreta, incompreendida e impossível, aquela abominação não poderia continuar, as pedras voltaram a voar.

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