O sereia.

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A água é prata. O vento faz parte do mar ou o mar faz parte do vento?
Meu corpo magro descansa na areia enquanto deixo o cigarro se apagar em mim, meu
corpo magro olha o mar enquanto o mar olha pra mim. Sou pescador há anos e vivo sendo
pescador e sou pescador para viver.
Nesse dia eu estava com tédio, não havia risada dos meus amigos, não havia moça
bonita, não havia Sol, ao parecer não haveria peixe. Mas me arrisquei, como um golpe no
vento me levantei e me dediquei em botar o meu barco no mar.
"Sortudo13" era meu camarada que me levava, meu barco. A cada remada minha o
"sortudo13" cortada o mar, arranhava o oceano e avançava a caminho da minha melhor
chance de levar algo para casa. Avançava. Avançava. Avançava.
Cheguei aonde queria e começo a desembolar a rede. A rede, a arma do homem que
pede alimento ao mar, o que embosca os peixes e com um pouco de esforço traz um ser
que nada as suas mãos, um ser que anda. A rede, uma alegoria tão moderna e bem pensada
que um dia foi o que salvou uma aldeia da fome.
Jogo. Espero. Puxo. Vem peixe, pouco mas vem.
Jogo. Espero. Puxo. Pouco peixe.
Jogo. Espero. Puxo. Peixe e algo.
Algo brilhante veio no meio dos peixes, algo arredondado e que emitia uma luz azul
e forte a ponto de eu cerrar os olhos. Eu toco nesse objeto que não conheço ou não toco?
Como um impulso, não me recordo se por curiosidade ou apenas por tédio, eu toquei na
esfera.
Senti meu corpo saindo do toque do barco. Escuro. Apenas escuro e quando procurei a
luz, achei com o Sol me despertando. Meu corpo falava que eu havia dormido não só por
dias, mas por anos, e onde estava? Olhei a minha volta e estava em uma praia, não em uma
praia que conhecia.
Morri? Será que o barco virou e o pescador teve seu fim logo se afogando? Será que
não lembro o que me fez parar aqui por um trauma?
Levantei e bati a areia que ficara agarrada em meu corpo, quando forcei a vista vi
uma moça sentada, deixava a água bater nos seus pés e olhava para o mar como quem
encarava uma tempestade vindo. Seu cabelo preto e curto, seus olhos redondos, sua pele
morena e suas pintas. Ela era mais que linda, ela era um acontecimento, ela era parte da
praia linda em que eu me situava.
As curvas dela eram as curvas de areia. O cabelo ondulado era a maré do mar. Os
olhos cor de bronze era o dourado das pedras que circundavam a praia. As pintas em seu
corpo eram as estrelas que iluminavam o céu na noite. Tudo era ela e ela era tudo.
Meu corpo foi quase que sem querer em direção a ela. Ela me olhava e quando eu
cheguei mais perto, minha boca abriu quase que sem querer e disse:
"Perdão. Qual nome desse lugar?"
Ela gargalhou.
"Para de ser comediante, pingo. Sabe muito bem onde estamos. Sabe muito bem como
veio parar aqui."
Pingo era meu apelido de infância, e não, eu não sabia como fui parar ali. Me mantive
calado por vergonha de perguntar e tive fé que as respostas iam acontecer. Ela sorriu. Eu
só me derreti, por dentro.
"Posso sentar com você?" – Perguntei, só queria ficar do lado dela.
"Vem. Eu te faço não se sentir só."
"Eu não me sinto só"
"Fugir da solidão é se sentir só"
"Mas eu não fujo da solidão"
"O que é solidão para você? Se emaranhar em relacionamentos vazios só para ter alguém
para te ouvir ou falar para você ouvir, isso porque não consegue se escutar por muito
tempo. O que anda falando para você mesmo? Porque não acha interessante?"
"Eu estou bem comigo mesmo. Só não sei aonde estou."
Ela levantou, balançou um pouco do corpo para tirar a areia e me disse:
"Venha, vamos caminhar um pouco."
"Para onde?"
"Não sei. Só para andar mesmo."
Eu estava ali, não sabia nem aonde estava, então fui.
A cada passo que aquela mulher dava, o mundo parecia parar. Eu a seguia bobo,
sem perceber aonde estava indo e como fui parar ali não era mais uma questão. Ela andava,
ria, e de vez em quando me perfurava com aquele olhar dela. O sorriso era como uma boca
entreaberta que me deixava mais confuso ainda.
"O que você está olhando?" – Ela perguntou.
"Você é linda, moça."
"Fala de novo, não ouvi." – E fazia uma cara de um sarcasmo misturado com provocação.
"Você entendeu."
"Saiba que eu posso mudar sua vida, Pingo."
Como um ato quase calculado ela me beijou. Lentamente. E eu a agarrei. Ela sorria a
cada beijo meu, a cada mordida ela dava risadinhas e pedia mais. Ao tirar minha mão ela
pediu para eu botar o carinho de novo. A cada respiração forte minha, era uma dela. A
cada tapa meu, era um gemido abafado dela.
Transamos ali mesmo, na areia, sem roupa e olhando um no olho do outro. Nossos
corpos encaixavam. O desejo de ambos era tanto que ardia, que repetimos, e repetimos, e
repetimos.
No final ficamos na areia, sentados, olhando o mar e conversando sobre tudo e todos.
Falamos sobre o universo, falamos sobre obras de arte, falamos sobre filhos, sobre o
passado, sobre o futuro, falamos sobre átomos, falamos sobre sexo, falamos sobre amores
passados e no fim ela posou sua mão sobre meu rosto e perguntou:
"Você vai voltar, Pingo?"
"Eu, não sei aonde estou..."
E como um puxão eu vi tudo escuro novamente, uma turbulência, e fechei os olhos com a
maior força que havia conseguido. Quando a luz veio e abri o olho eu estava lá, como no
começo, como no início de tudo. Com a rede cheia de peixes, com o objeto brilhoso na
mão e com o barco balançando.
Ao olhar para o céu vi que se houvesse passado algum tempo, aquele tempo fora
mínimo. Fiquei alguns minutos olhando para aquele objeto sem saber muito o que
aconteceu, a única coisa que sabia e que estava apaixonado por um sonho, ou foi um
delírio, ou aquilo existiu? Pareceu tão real. Será que era uma entidade?
Coloquei aquele objeto no bolso e fui remando à praia. Será que vivenciei algo
paranormal? Será que esse fenômeno foi o que deu origem as sereias? Será que
marinheiros do século passado tocavam nesse objeto misterioso e se encantavam por ela,
e assim a chamavam de "sereia" e o objeto brilhante era seu "canto". Aquilo e ela tomaram
minha noite de sono.
Passei a contar para todos sobre minha experiência e ninguém acreditava em mim,
toda vez que ia sozinho eu a via, toda vez que ia acompanhado, nada acontecia e eu ficava
parecendo um lunático. Me apelidaram de "o sereia" por conta de minhas inúmeras
tentativas de mostrar o que acontecera comigo.
Não estou mais em minhas condições normais. Há dias não a vejo mais. Começo a
pensar que, de fato, sou doido. Há dias que me questiono o que é a realidade, se é no
mundo com aquela moça ou se é o em que sou um pescador solitário e sozinho.
Hoje será minha última tentativa, já não suporto mais viver em um mundo onde não
tenha a praia, a moça, aquele sexo. Não suporto mais viver como um louco, não suporto
mais ser o "sereia". Vou até o mar, vou tocar no objeto e caso não a veja, tirarei minha
própria vida. Tal como o canto da sereia, que amordaçava os homens pelo desejo e depois
matava-os.
Arranquei meu barco da areia e, com ele, batalhei rasgando o mar. Cheguei em um
ponto onde o mar já me circundava, e o mar estava mexido. Peguei a esfera e toquei nela
fechando meus olhos. Nada. Fiz novamente. Nada.
Aquilo me encheu de fúria, aquilo me encheu de ódio. Comecei a xingar, pedindo
para vê-la. Na ultima vez, apertei com tanta força a esfera que ela acabou quebrando. Eu
olhava incrédulo, minha passagem para encontrar o meu grande amor estava destruída.
Num passo de raiva e ódio me joguei no mar, esse mesmo mar não estava mais azul
e tampouco verde, estava cinza, estava cor de prata. Me joguei não para me ferir, mas para
diluir a minha raiva, mas o mar fizera um redemoinho em baixo de mim. Me puxou, me
remexeu e me trouxe para cada vez mais fundo.
Eu como pescador, atribuo também o adjetivo de belo nadador. Mas não naquele
momento, tentei manter minha calma e voltar a superfície sem perder a esfera. Quanto
mais eu tentava mais era arrastado para o fundo e mais apertava a esfera na mão esquerda
para não perde-la. Nadei para cima. Fiz força. Me desesperei. Será o fim. E por fim,
sabendo que se morre afogado por respirar água, eu respirei. A água veio queimando meu
nariz, queimou minha garganta e pude sentir entrando nos meus pulmões e quando respirei
de novo.
Acordei naquela praia, a que eu tanto esperava. Será que era tudo um plano? Será que
ela é a morte? Será que ela é a sereia? Será que se eu voltar vou estar morto em algum
fundo de oceano? Não sei. Me levantei e quando olhei para o canto ela me disse.
"Você voltou, Pingo! Agora você não vai mais embora."

O sereia.Where stories live. Discover now