Os últimos dias passaram rapidamente sem mais problemas, aconteceram apenas rápidos encontros com pulmonoscorpios e araquimeras, escorpiões énormes como bois que cospiam veneno paralisante e aranhas com braços de caranguejo e o tórax escondido em uma grande concha. Por sorte nas poucas vezes que vieram ao nosso encontro ou nos cercaram, o homem os matou como insetos e tivemos uma refeição requintada. Em uma das noites, enquanto assava carne em uma pedra sobre a fogueira, tentei puxar algum assunto, mas tive medo de ser desrespeitoso então nunca fui além de banalidades. Até que na noite seguinte ele falou
- ...o que pretendes fazer quando nos separarmos?
A voz do homem estava menos rouca agora, mas ainda me causava calafrios maiores do que o sussurro do vento sobre as dunas. Ainda tinha um tom fantasmagórico, como se fosse o rugido do espectro de um leão.
- e-eu? ... bem, acho que não tenho mais opções do que voltar para onde nos encontramos e terminar o resto dos meus dias bebendo e comendo o dinheiro que ganhar com a minha parte da recompensa...
Depois disso o homem não respondeu, apenas continuou sentado em silêncio contemplando o horizonte.
Os últimos dias em nossa jornada foram tão silenciosos quanto, porém já no segundo era possível ver nosso destino. Uma enorme base de pedra e sobre ela uma pilha de tijolos e por cima torres de madeira: a cidade fortificada de Centreluce, o braço mais distante da humanidade e o único brilho no centro do deserto, ao passar dela há apenas um mar de areia que esfria a cada passo dado em direção ao norte.
Na noite do dia seguinte chegamos a base da cidade, que, mesmo sendo tão grande, não tinha nenhum fluxo de pessoas para dentro ou fora. Como é regra, acendi uma lamparina e esperei por alguma resposta de cima dos muros que por fim veio.
Uma grande luz vinda de cima do muro cobriu a mim, o homem e minha carroça e então uma forma fez sombra no meio da luz, o guarda da cidade que deveria aceitar nosso pedido de entrada havia enfim chegado.
- o que os traz aqui?
O homem deu um passo a frente e olhou em direção a luz
- Negócios...
A voz dele se mantinha a mesma, porém incrivelmente alta, a ponto de assustar o guarda que por um momento saiu da frente da luz
- mercadores ou mercenários?
- Ambas as coisas: trago uma cabeça a qual foi posto um preço.
Alguns segundos passaram e então ao nosso lado, algo preso por cordas desceu até a nossa altura. Uma engenhoca parecida com uma gaiola, com polias e grades, dela a mesma voz do muro falou por um tipo de funil metálico.
- o chão é resistente, ponham a carroça pra dentro e subam todos de uma vez.
O homem fez como dito e se pôs de pé na base da gaiola, eu o segui trazendo a carroça e cobrindo o rosto do animal, se era pra subir era melhor prevenir qualquer acidente.
A subida foi rápida, porém cada segundo tinha o peso de minutos para mim. Nunca tinha posto meus pés em uma cidade, ainda mais uma fortaleza, minhas palmas e testa estavam escorregadias com o suor. O homem como sempre se mantinha completamente inerte, como uma estátua de um deus antigo esquecido pelos vivos.
Enquanto sabíamos o sol subia junto, no chão envolta da grande parede de pedras eu notei alguma movimentação: portões abriram debaixo da areia e pessoas saíram debaixo deles, levando panos e paus e montando cabanas simples. Então era essa a população da fortaleza de Centreluce...
A gaiola parou, no teto abriu uma portinhola e a mesma voz que soou pelo cano falou novamente
- muito bem, o que temos aqui? Disseram vir a negócios certo?
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As Crônicas do Rei: O Homem Que Se Levanta No Deserto
AdventureNo meio de um deserto, debaixo de uma pedra, um homem, magro, abatido, com um olhar morto se estende para o sol depois de incontáveis passagens de tempo. Na cabeça, uma coroa de lata pela metade, na mão, uma espada quebra e sobre o corpo esquelético...