Capítulo 1

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Deodora realmente não pensava que o dia fosse acabar tão ruim assim. Estava completamente errada.

Ela entrou na casa de Pajeú, fechando a porta atrás de si - porque ele sempre parecia esquecer de fazer isso. "Meu Deus do céu, quase que Tertulinho não me deixa sair de casa. Ficava perguntando pra onde eu ia, não se tem mais privacidade, não?" Ela foi até Pajeú, colocando as mãos ao redor da gola de sua jaqueta e mexendo nela. "Mas agora que só tem nós dois aqui..." Sorriu, ajeitando um pouco o cabelo do amante. Porém, ele, que até agora só a encarava com uma expressão indecifrável no rosto, se afastou dela. Levemente confusa, Deodora se aproximou novamente. "Oxe... o que foi, homem?"

"Foi a senhora que mandou envenenar minhas terra?"

Ela parou. Tinha certeza que seu coração havia pulado uma batida. Nunca, na sua vida inteira, iria imaginar que aquela história iria voltar, mesmo com Pajeú querendo vingança contra o Coronel por causa disso por meses. E muito menos sonharia na hipótese da culpa cair sobre ela, apesar de saber que realmente foi sua ideia. No susto, ela não tinha nem conseguido inventar uma mentira para acobertar a história. "Quem foi que te disse isso?"

Pajeú balançou a cabeça de leve em negação, ignorando a pergunta. "Foi a senhora ou não foi, dona Deodora?"

"Oxe... claro que não, homem! Por que eu faria uma coisa dessas?" Deu as costas para ele, fingindo indignação. Por dentro, sua mente corria a mil para sair dessa situação.

"Pois eu ouvi o vosso filho falando o contrário. Que a ideia dos agrotóxicos tinha sido sua." Ele disse, mais sério do que nunca. Claramente, não acreditou na mentira dela. "E foi por isso que meu menino quase se foi."

Deodora sentiu um frio na espinha, e ela se virou para o homem. "Pajeú-"

"Cirino podia ter morrido, dona Deodora. E Deus me livre, mas o pior podia ter acontecido se não fosse a doutora Candoca." Ele fez um sinal da cruz, segurando a medalhinha que tinha de seu Padre Cícero. Então, olhou de volta para Deodora, e ela conseguiu identificar a expressão de Pajeú, finalmente. Traição.

"Não diga uma coisa dessas." Ela gesticulou para o alto - não queria nem pensar em se o garoto tivesse se adoentado de vez; tinha se apegado a ele, mesmo que não admitisse. "Isso já faz tempo. Cirino está bom de novo, não tá? Então pronto, não tem o que se preocupar, deixe isso pra lá. Pra que procurar um culpado agora?"

"Porque eu não sou de esquecer uma coisa séria dessas, não. Principalmente coisa que machucou meu menino. Ou a senhora ia querer viver em um mundo em que tivesse a possibilidade do seu filho ter morrido, se isso tivesse acontecido com Tertulinho?" Com o silêncio da mulher - assim como ele, ela também colocava o filho em primeiro lugar -, ele concordou com a cabeça. "Foi o que eu pensei."

Deodora respirou fundo, buscando uma outra abordagem. Tentava ignorar seus olhos ficando marejados, ela conseguia tomar controle de tudo isso. "Pajeú, olhe... não foi minha intenção prejudicar ninguém. Os agrotóxicos eram questão de negócios da lavoura, da fazenda. Eu sinto muito, viu?"

Pajeú cruzou os braços, negando com a cabeça. "O que a senhora e a sua família fez é muito grave! Isso não tem volta, não, dona Deodora."

"Pois eu te peço perdão, de verdade. Eu nunca que faria isso de propósito, homem, porque eu sou uma mulher de respeito!" Ela segurou os ombros dele, buscando no fundo dos seus olhos algum indício de que ainda podia tê-lo de seu lado. Então, jogou sua última carta na mesa. "E porque eu te amo, Pajeú."

Pajeú arregalou os olhos, surpreso. Ele mesmo já tinha se declarado antes para ela - o contrário nunca ocorreu. Confuso, ele se perguntou o que passava pela cabeça de Deodora, e se ela realmente correspondia ao que ele sentia. Mas o momento se passou e ele se deu conta de que era mentira. Tinha que ser. Por que mais ela falaria isso justo agora? Não acreditava em mais nada que saía da boca de Deodora, e não ia cair em outro truque dela. "Você ama um matador?" O tom de voz dele era duro, mas com bastante ironia.

Deodora franziu o cenho, persistente. "Oxe... não é tu mesmo que diz que não é mais esse homem? Então-"

"Não, isso..." Ele a interrompeu, tirando as mãos dela de seus ombros. "Isso não é amor, não é sentimento bom. Não é sentimento nenhum. A senhora... a senhora só tava me usando pra mor de ajudar nos seus planos."

"Como é que é? Ai meu Deus do céu." Deodora revirou os olhos. "Usando, agora deu. Deixe disso, vá."

"Você mandou eu sumir com aquela doutora porque ela tava atrapalhando em algum plano, não foi? E não porque a senhora corria risco de vida. Era pra tirar ela do jogo."

Ela não respondeu por alguns segundos, colocando as mãos na cintura. Ele estava descobrindo tudo, e isso era a última coisa que ela queria que acontecesse. "Oxe, e por que eu faria isso?"

"Porque toda vez que a senhora me procura é porque quer que eu faça alguma coisa pra você. Que nem com o jornal." Ele não deu nenhum passo para trás, mas era como se uma parede tivesse sido erguida entre os dois com o olhar de Pajeú. "É só isso que eu sou pra senhora. Um jagunço pra ser usado quando quiser. Eu devia ter imaginado isso, vindo dos Tertúlios."

"Olhe lá como você fala. É claro que eu não estou te usando, Pajeú. Que coisa! Pois fique sabendo que, desde que tu começou a trabalhar pra mim, eu nunca quis nenhum mal a você!" Ela apontou para ele, frustrada com a direção que essa conversa tinha tomado.

"Mas fez mal! Meu Cirino quase se foi por culpa da senhora!" Ele a acusou, o ressentimento presente em sua voz. Uma traição sempre doía, ainda mais de uma pessoa amada. A discussão já estava alta, e era possível até que fossem escutados por alguém que passasse por perto - se existisse qualquer outra pessoa morando por aquelas bandas. Infelizmente, tinha só mais uma, e ela ouviu o final da briga ao entrar na casa.

"A senhora queria me matar?"

Os dois pararam na mesma hora, e Deodora se virou para ver Cirino na frente da porta, agora aberta. Ela engoliu em seco e forçou um sorriso, ainda que meio triste, para o menino. "Oxe, claro que não, viu, Cirino? Nem pense nisso."

Cirino inclinou a cabeça para o lado, meio sem entender. "Mas eu ouvi que-"

"É conversa de adulto, não ligue, não." Pajeú passou por Deodora e pegou o filho no colo, o levantando no ar. "Já tá tarde, meu filho. Já pra cama, vamo." Ele começou a carregar o garoto até sua cama, olhando por cima do ombro para ela. "Dona Deodora já tá de saída."

"Tchau..." Cirino murmurou, confuso, e bocejou, já cansado do dia brincando com os amigos.

"Tchau, meu lindo." Ela foi fazer carinho no rosto do menino que considerava como quase um filho, mas Pajeú afastou sua mão, dando as costas e indo colocar Cirino para dormir. "...pois eu já vou, mesmo." Ela comentou, estranhamente quieta.

Deodora respirou fundo, segurando as lágrimas - e qualquer sentimento que não fosse raiva por ter sido expulsa daquele jeito - que temia que pudessem escorrer pelo seu rosto a qualquer momento. Ela era Deodora Aguiar, não iria ficar ressentida por um matuto qualquer. Só que não era um matuto qualquer. Era Pajeú. E, mesmo sabendo que ainda tinha muitas coisas para tirar de seu peito, pela primeira vez na vida ela saiu de um lugar com uma conversa inacabada, completamente sem palavras. Sem ela mesma colocar um ponto final na história.

Seu veneno é cruel.Onde histórias criam vida. Descubra agora