01-Dante

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O telefone toca, atendo a contragosto

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O telefone toca, atendo a contragosto.
Acabo sendo mal-educado com o cliente. Que desliga em minha cara.
"Perdi outra venda" penso.
— Foda-se!
Dois minutos depois, o alerta de mensagem soa do meu celular.
Júlio: Escritório. AGORA!!!
Jogo a cabeça para trás. Balbucio meia dúzia dos meus melhores palavrões enquanto caminho pelo corredor.
Helô me reprova com uma careta. Dou um sorriso maléfico desejando mentalmente que ela tropece enquanto dá uma corrida curta para me alcançar.
Bato na porta e entro sem abri-la totalmente, fecho ignorando Helô, para que ela não tenha tempo de passar.
Ela entra em seguida, arrumando à postura, limpa a garganta, para impôr presença, ignoro.
Me sento, esperando a bronca de Júlio.
Helô para mim é um fantasma; uma alma penada. Por isso fingi que não a vejo.
Indignada senta ao meu lado. E como um fantasma faria, arrepia meus pelos, espanto a sensação e volto minha atenção somente à Júlio, meu amigo e patrão.
— O que fez Dante?
— Desde quando? — finjo ignorar o teor do assunto.
— Dos cinco últimos minutos — Júlio fica vermelho, mas fala cortês.
Limpo à garganta. E Hêlo solta um som desaprovador. Agora o fantasma que me ronda começa a incomodar!
— Não muito. Tentei tomar meu café, mas esfriou... Desisti.
Júlio passa a língua nos dentes, irritadíssimo.
— Duas contas em quatro dias. Foi o que perdemos. — Assinto franzindo o cenho — Sabe por quê?
— Acontece —Abro as mãos depois as junto cruzando os dedos. — Uns dias ganhamos... outros perdemos... — Balbucio qualquer coisa.
— Nada disso! — Helô se manifesta, olho de relance a fuzilando. Exorcizando a presença maligna do satanás de saia.
— Shiiiu!! — Júlio a cala — Dante! Eu entendo que isso aqui não é sua praia. Mas cara, não fode! — Ele passa a mão nos cabelos grossos, acinzentados, arrumados com gel. Nem um fio se move. — Toda vez que desconta seu mau-humor em um cliente, quem perde sou eu. — Explica. — Cara. Eu! O otário que te aguenta. Que te estendeu à mão. — Ele mexe a cabeça sem graça, quase num pedido secreto de desculpa. — Tá certo que o trabalho não é grande coisa...
Concordo.
— Uma bosta! — Murmuro, irrompendo-o.
Ele aperta a boca formando pregas em volta dos lábios.
— Precisa disso?
— Desnecessário... —Helô, empina o nariz, feliz por enfim me espezinhar. — O correto seria dar um aviso prévio. O Rh, está ai para isso.
— Sai e fecha a porta, dona Helô. — Júlio manda.
Ela faz um som. Um miado, sei lá...
Bufando obedece.
— Agora é só nós dois — ele diz. Me ajeito na cadeira, baixando a guarda. — Eu entendo que isso aqui é pouco para você. Muito pouco — murmura triste. — Mas é a única coisa que posso te oferecer agora. E a menos que volte a pintar. Ou aceite buscar algo dentro do que gosta e faz bem... terá que entender que não pode simplesmente " tacar o foda-se" aqui, quando lhe der na telha. — Franze o cenho que brilha. — Toda vez que faz isso, não está se prejudicando. Sim a mim. Sou eu que perco dinheiro com seus rompantes. — Concordo com tudo sem graça. — Pode por favor se esforçar? Ao menos para não falar palavrões para os clientes.
— Justo!
— Obrigado! — ele solta o peso na cadeira aliviado — Cara se te mando embora me ferro em casa.
Entorto a cabeça.
— Valeu! Pensei que você fosse meu amigo. Agora sei que é a Vanessa.
— A Vanessa por algum motivo que só o além conhece, gosta de você. Pior! Ela te protege. — Ele bufa.
Sorrio fraco.
— Bom pra mim.
Conheço Júlio desde o ensino médio. Nos separamos só quando fui embora do país estudar Belas Artes.
Júlio e Vanessa, se conheceram nos corredores da faculdade, casaram logo após a formatura, tiveram dois filhos, que amo. Se amam muito. Pela nossa amizade, Vanessa e Mônica tornaram-se próximas. Nós os amávamos, víamos neles o que queríamos para nosso futuro.
Futuro, a única coisa que não tínhamos.
Quando Mônica morreu, eu morri. Mas infelizmente alguém esqueceu a minha carcaça aqui, fedendo, decompondo.
Vanessa me entendeu. Respeitou, até hoje é a única que nunca me mandou seguir em frente. Nunca veio com a bobagem emocional de quê:     "Deus escreve certo por linhas tortas..." ou qualquer merda dessas que se diz, quando deveria ficar calado.
Logo no enterro, Vanessa me deu um presente, uma fotografia. Mônica vestida de noiva. Júlio no momento empalideceu.
Foi minha única chance de realizar um último sonho.
Vê-la iluminada dentro do vestido de renda branco. Na sua última prova. Alguns dias antes do "Sim". Que nunca aconteceu.
Levanto da cadeira, ajeitando a calça.
— Vou levar em consideração tudo que disse. Vou melhorar o palavriado.
— E o mau-humor? — Nego com a cabeça.
— Sou o que sou. — Dou um passo alcançado a porta, puxo a maçaneta e antes de fechar anuncio: — Até amanhã.
— Como assim? — Fecho a porta e ouço Júlio esbravejar—, são quatro horas. Quatro horas, Dante...
***

Sento em uma pedra do Arpoador, várias pessoas começam a se posicionar.
Todos ansiosos para assistir o pôr do sol.
Inspiro, prendo o ar. Elevo o rosto fechando os olhos.
O calor do sol junto a brisa do mar. Algumas gotas de água salgada respingam em mim, quando as ondas se chocam nas pedras.
Vida!
Tudo aqui é vivo, colorido, iluminado.
Como eu era antes.
Solto o ar lentamente. Abro os olhos vagaroso. Um borrão de vermelho, azul e amarelo, ganham espaço para a paisagem.
Sinto meus olhos arderem, marejarem.
— Quer casar comigo? — as lembrança das lágrimas de Mônica ao aceitar meu pedido neste mesmo lugar me comovem.
Aqui era seu lugar favorito no mundo. Vínhamos sempre, assistir as cores da despedida do dia.
Todas as nossas cores, em um único lugar.
Nos beijávamos na bruma do anoitecer. Ela comprava um refringente de uva, do ambulante, eu achava graça.
Caminhávamos, na praia, sentindo o frescor do mar, a areia em nossos pés.
Era perfeito!
Volto sempre que a saudade sufoca.
Não que o lugar me traga alívio. Acho até que é ao contrário.
Mas ao menos aqui sinto como se estivesse mais perto do que é divino; do céu. Dela.
O sol diz adeus outra vez. Com a promessa de voltar amanhã. Me despeço torcendo para que não possa prometer o mesmo. Em vão, imagino.
Limpo o rosto, sem vergonha das marcas salgadas que escorreram junto a dor, manchando minha pele.
Desço ávido, evitando olhar a felicidade ao redor. Tudo que invejo, estampado em cores. Me lembrando do mundo cinza que vivo.
Caminho até a barraca que vende o refringente de uva. O vendedor me reconhece. Antes que peça, entrega a lata. Pago, agradeço, abro dando um longo gole de olhos fechados.
Suspiro com a lembrança do sabor.
— Gosta mesmo disso. — o ambulante comprova.
Tombo a cabeça olhando para a lata. Quem cala consente.
Caminho pela orla. Entre às pessoas que fazem seus exercícios habituais.
Por mais triste e deprimente que seja, é melhor aqui, entre sons e lembranças.
Do que no vazio das paredes brancas.
Um latido forte vem em minha direção. Paro arregalando os olhos.
Um animal enorme corre, marrom, com a língua para fora. A baba voando conforme late e se mexe. Estico as mãos. Adrenalina corre em mim, como há anos não sentia. As veias pulsam em meu pescoço.
"Tenho veias ainda?!"
O cavalo disfarçado de cachorro eleva as patas dianteiras. Para cima de mim. Estico as mãos para me defender e grito:
— DEITA...
"Deitar é o cassete!"
As patas me dão um solavanco, caio no chão, refringente de uva entorna por tudo, o cachorro me lambe o rosto, melado.
— PORRA! — grito tentando tirá-lo de cima de mim.
— Hércules! — uma moça chama — Senta garoto!
O filho da mãe senta na hora.
— Jura ?! Eu mandei você deitar, não ouviu? — falo para ele, que ergue as orelhas e lambe a baba. O rabo balançado pronto para pular em mim novamente.
— Desculpa! — A moça estica a mão para me ajudar. Recuso.
Levanto passando a mão pelo meu traseiro. Fingindo limpar, mas na verdade tentando massagear a dor do tombo.
— Você não deveria andar com um animal perigoso desse livre. — esbravejo.
— Ele escapou do meu aperto. — seus olhos tentam trazer doçura. Não caio nessa, toda mulher bonita tenta persuadir com charme.
— Se eu fosse menor, teria me ferido. Sabe que posso até processar você. Chamar a carrocinha...
Ela cobre os lábios rindo sem pudor.
— Calma, moço. Tirando seu traseiro, tudo ficou intacto ai.
Espremo meus olhos até repuxar o nariz.
"Ela falou do meu traseiro? Quem é essa maluca"
— Não é bem assim... — passo a mão no peito onde o cachorrovalo me deu um coice. Sinto o tecido úmido. — MERDA! — me chateio, na verdade fico puto. Essa camiseta foi o último presente que Mônica me deu de aniversário. — Olha aqui... — puxo a mancha roxa no tecido branco. — Seu animal maldito estragou minha camiseta.
— Ei! Não fala assim do Hércules. — ela o acaricia, em cumplicidade. — É só uma camiseta...
— Não-Não é só uma camiseta. Não fala do que não sabe. Isso aqui é um símbolo para mim. — mostro a ela — era importante e você e esse bicho estúpido destruiram.
— Cara você é um...
Ela passa a mão livre nos cabelos castanhos, na altura do pescoço. Dando meia volta em si mesma. Então aspira forte, como se tentasse não querer me matar.
Como uma psicopata volta a me olhar com doçura, como se virasse um botão, diz calma:
— Eu lavo. Tenho certeza que ficará impecável.
— Não mesmo. Você é maluca. Não vou te dar ela. — Seguro a borda da camiseta com força, como se ela fosse fugir do meu corpo se a soltasse.
A moça revira os olhos grandes, morde o canto do lábio, soltando um sorriso lento.
Pega algo no bolso traseiro do jeans. Um cartão, entregando para mim.
— Toma! Estarei no petshop todos os dias em horário comercial. Se não confia em mim, entendo. Mas leva a camiseta e mando lavar. — estreito o olhar — Em uma lavandeira, ficará branquinha novamente. Se levar em uma sacola juro nem encostar nela.
A doida beija o dedo em juramento. Estica o cartão entre os dedos, relutante pego.
O cachorrovalo late, me causando um susto. Ela ri. Me recomponho sem graça.
— Até breve! — Diz saindo, começa a conversar com o bicho.
Na verdade o animal é até bonito. Muito grande para uma moça tão pequena segurar. Claro que ela não daria conta.
Quando ela está longe o suficiente olho para o cartão que diz:

PETLOVE
Analu
Assistência para animais domésticos

Junto aos números de telefones. Volto alisar a mancha.
"Que dia de merda foi esse?"

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